Velhas e novas «normalidades» pandêmicas sobre os territórios-corpos das mulheres
Por Patricia Agosto. Publicado em 25 de janeiro de 2022 em Ecología Política.
Traduzido por Renata Lopes. Revisado por Débora Cunha.
Resumo: A pandemia de COVID-19 aprofundou uma crise multidimensional do capitalismo global pela qual a reprodução da vida no planeta foi gravemente ferida, porque, para o sistema, produzir para acumular é mais importante do que garantir a vida. Porém, se trata de uma pandemia que se soma a outras «pandemias», reproduzindo na somatória, velhas e novas «normalidades». O capitalismo patriarcal, extrativista e colonial se converteu em «normalidade» com a modernidade, e em «pandemia» para grupos sociais subalternizados, como mulheres e corpos feminizados, cujos territórios-corpos foram submetidos a múltiplas formas «normalizadas» de opressão.
Nessa «nova normalidade», muitas das formas de exploração, invisibilização e violência sobre as mulheres — fundamentos do capitalismo patriarcal — se aprofundaram, o que não as impediu de protagonizar a construção de estratégias de resistência e alternativas que, garantindo a reprodução da vida e defendendo seus territórios, vêm questionando e enfrentando velhas e novas pandemias.
Velhas «normalidades» pandêmicas
A pandemia do COVID-19 aprofundou uma crise multidimensional da «normalidade» capitalista que evidencia que o conflito capital-vida (Pérez Orozco, 2014) é o mais importante que a humanidade enfrenta. E nessa «era pandêmica», a natureza nos adverte, com sua fúria incendiária, inundável, sedenta, climaticamente crítica, que assumir e praticar relações de dependência entre seres humanos e com a natureza é a única forma de evitar a extinção da vida no planeta.
Porém, essa é uma pandemia que se soma a outras «pandemias» com séculos de existência. Nos referimos ao capitalismo patriarcal, extrativista e colonial que se converteu em «normalidade» com a modernidade e em «pandemia» para grupos sociais subalternizados: mulheres, povos indígenas, comunidades afrodescendentes e camponesas. Se uma pandemia afeta a muitos indivíduos de extensas regiões geográficas e aprofunda desigualdades, o patriarcado e a colonialidade a que foram submetidos esses grupos subalternizados podem ser considerados como pandemias históricas «normalizadas».
Como parte desses grupos, as mulheres foram submetidas a diversas formas de opressão desde a pré-história patriarcal da humanidade (Segato, 2016). Nas sociedades modernas/capitalistas/coloniais essas opressões se aprofundaram e sobre as mulheres recaíram os trabalhos de cuidado da vida humana e de reprodução da força de trabalho, situados no âmbito «privado», do «pessoal», e desvalorizados por não «contribuir» para o processo de acumulação capitalista (Federici, 2020).
Esses trabalhos de cuidado foram considerados «tarefas menores» do feminino em contraposição com «tarefas maiores» do masculino, diferenciação que se apoia na divisão sexual do trabalho. Porém, esses trabalhos de reprodução da vida são pré-condição para a produção mercantil, já que produzem uma mercadoria fundamental para o sistema capitalista, que é a força de trabalho «produtivo». É por isso que o capitalismo não pode se sustentar sem o patriarcado. Olhar para o cuidado nos lança um desafio importante: embora esses sejam trabalhos que foram impostos às mulheres, e portanto, essencializados como algo ligado à feminilidade (Pérez Orozco, 2014), eles são de vital importância para o sustento da vida e é necessário revaloriza-los, assim como as mulheres que os realizam. Entretanto, essa revalorização não deve implicar na perpetuação da divisão sexual do trabalho, é necessário tirá-los das mãos de, quase exclusivamente, mulheres para que sejam compartilhados de forma responsável em um processo de politização.
A pandemia que aprofundou «pandemias»
A pandemia que estamos vivendo aprofundou as desigualdades geradas pelo capitalismo patriarcal, extrativista e colonial ao longo de sua história. Compartilhamos alguns exemplos da situação das mulheres na Argentina em 2020. Neste primeiro ano de pandemia, as mulheres receberam em média 25 por cento menos que os homens no mercado de trabalho (EcoFeminita, 2020a); a taxa de desemprego no primeiro trimestre foi de 11,2 por cento para as mulheres e 9,7 por cento para os homens; a taxa de subempregos nesse mesmo trimestre foi de 13,7 por cento para as mulheres e 10 por cento para os homens (EcoFeminita, 2020b; 2020c). Embora as mulheres estivessem mais «desempregadas», foram elas que assumiram, em maior proporção que os homens, os trabalhos precários do subemprego com os quais tentaram sustentar a sobrevivência familiar frente ao colapso econômico pandêmico.
A pandemia também aprofundou a feminização das tarefas de cuidado e reprodução, que desde sempre implicaram numa sobrecarga de trabalho para as mulheres que têm emprego ou possibilidade de acessar o mercado de trabalho. Foram as mulheres a absorver o aumento de tempo dedicado às tarefas domésticas, de cuidado e de apoio escolar gerado no contexto de isolamento social.
Por sua vez, o avanço das atividades extrativistas nos países periféricos foi uma das formas de conter o aprofundamento da crise econômica, razão pela qual foram declaradas como «essenciais» logo no início da pandemia (FAU-AL, 2021). E esse avanço extrativista aumentou os efeitos sobre os territórios-corpos das mulheres. Se consideramos que os territórios-terra, ou seja, o espaço concreto onde se constrói e se recria a vida (Cabnal, 2015), e os corpos das mulheres são a base da reprodução da vida, podemos afirmar que o que acontece nos territórios terá repercussões nesses corpos que criam e sustentam a vida familiar e comunitária. As feministas comunitárias nos ensinam que podemos reconhecer e sentir o território em nossos corpos e o corpo como território, e que a luta deve se centrar na recuperação e na defesa do território corpo-terra. (Cabnal, 2015).
Respondendo a esse avanço sobre as outras formas de ser e estar no território, a pandemia e a quarentena não foram obstáculos para que mulheres e famílias fossem expulsas de suas terras e afastadas de seus meios de subsistência. Esse é o caso das famílias do Movimento Sem Terra do Brasil que, em agosto de 2020, foram desalojadas das terras que ocuparam por vinte anos por consequência de uma ordem judicial de restituição ao proprietário de um engenho açucareiro que havia fechado suas portas em 1996 (Sudré, 2020). A migração forçada gerada por esses despejos obriga as mulheres a construir outras ou novas formas de reprodução da vida, seja produzindo alimentos em outras terras ou cozinhando para as cozinhas comunitárias nos bairros populares urbanos. Tanto no âmbito urbano quanto no rural, as estratégias postas em jogo pelas mulheres para garantir a reprodução da vida através da solidariedade e do cuidado foram evidenciadas claramente no atual contexto crítico (Tricontinental, 2020;.Fundación Rosa Luxemburgo, 2020).
A pandemia também não foi um obstáculo para a repressão de um povoado e perseguição judicial de mulheres que lutam contra projetos de megamineração na localidade de Andalgalá, província de Catamarca, Argentina. Em abril deste ano, o povoado andalgalense sofreu forte repressão ao se opor a instalação do Proyecto Minera Agua Rica Alumbrera (MARA), para extração de ouro, cobre e molibdênio, nas mãos de grandes corporações: Yamana Gold, Newmont e Glencore (Agua para los Pueblos, 2021). Seis meses depois, várias mulheres que fazem parte da Asamblea El Algarrobo — instância organizativa que se opõe a megamineração em Andalgalá — foram acusadas de vandalismo por uma suposta pichação nos escritórios da empresa Agua Rica. Porém, as mulheres manifestaram que estão sendo perseguidas pela justiça e que se trata de uma reivindicação baseada em fatos não comprovados (Revista Cítrica, 2021).
Junto com as violências que se aprofundaram com os extrativismos, outras aumentaram de forma alarmante. Se colocamos novamente a Argentina como exemplo, durante o ano de 2020 houve um feminicídio a cada vinte e quatro horas, com um total de 295 em todo o ano. Segundo o «Informe anual 2020» do Observatorio de Femicidios de la Defensoría del Pueblo de la Nación (2021), a pandemia e as medidas de isolamento contribuiram para o aumento da violência contra as mulheres e meninas, assim como para os feminicídios, reforçando as evidências que indicam que o lugar mais inseguro para as mulheres é sua própria casa, onde ficam presas com seu agressor. As famosas frases «vivas nos queremos» (nos queremos vivas) e «ni una menos» (nem uma a menos) nasceram na América Latina e gritaram mais alto com a pandemia.
Tramas de resistência e alternativas a partir das mulheres
Apesar do empenho em invisibilizá-las e violentá-las, as mulheres vivem tramando resistências e alternativas em defesa dos territórios. A emergência sanitária que fez mais visíveis e aprofundou as desigualdades sociais, a destruição da natureza e as dificuldades para sustentar as lutas em plena quarentena também não foram um obstáculo para elas.
Antes da pandemia, a partir de correntes ecofeministas e feminismos camponeses, decoloniais e comunitários, as mulheres nos interpelam com suas leituras particulares dos extrativismos. Nelas se identificam os impactos diferenciados por gênero, seu caráter patriarcal e racista e a necessidade das lutas pelo território-terra e pelo território-corpo.
Algumas correntes ecofeministas, como a essencialista e a construtivista (Herrero, 2015), fizeram importantes contribuições à compreensão do mundo, constituindo uma ótima proposta para refletir sobre como chegamos a este estado pandêmico e por quais caminhos alternativos temos que andar para construir outros mundos e outras vidas possíveis. Essas vozes ecofeministas, ampliando o discurso ecologista de crítica ao capitalismo, compreenderam que o patriarcado e a destruição da natureza são parte de um mesmo sistema de pensamento e dominação (Federici, 2017). Elas também nos ajudam a entender que, entre os muitos paradigmas da modernidade, as divisões estritas entre natureza e cultura, mente e corpo, razão e emoção, nos levaram a esse colapso, deslocando um horizonte de vidas dignas para os povos para cada vez mais longe. A partir das alternativas, os ecofeminismos nos convidam a presumir que sem natureza não há vida humana e que com opressões não há vida digna, superando as visões androcêntricas e antropocêntricas que normalizam as hierarquizações entre seres humanos e a natureza. Sem praticar essas propostas, que implicam modificar a matriz produtiva e extrativista que caracteriza a «normalidade» capitalista, é um fato indiscutível que se produzirão outras pandemias que seguirão aprofundando a ferida das possibilidades de reprodução da vida no planeta.
Da América Latina, uma das contribuições mais interessantes é constituída pelos feminismos comunitários, que compartilham de muitas das leituras dos ecofeminismos e agregam outras que enriquecem os olhares e as práticas das mulheres que resistem e constroem alternativas. Assim, propõe vincular as lutas pelo território-terra e pelo território-corpo; reivindicam ao mesmo tempo os feminismos e as cosmovisões indígenas; e denunciam os patriarcados, tanto o colonial quanto o originário, com um olhar histórico que reconhece a sobrevivência atual de ambos. A partir dessa perspectiva, muitas mulheres indígenas, camponesas, dos setores médios e populares constituíram uma rede de defensoras da vida, da água, dos territórios, que protagonizam resistências ao avanço dos projetos extrativistas, denunciando ao mesmo tempo seu caráter patriarcal e racista.
Em termos de alternativas, as mulheres e corpos feminizados possuem saberes que, tecidos a partir de suas experiências e práticas históricas na preservação e cuidado da vida humana e não humana, devem ser recuperados. Vandana Shiva já nos dizia há muitos anos: «A herança intelectual para a sobrevivência ecológica está com aqueles que são especialistas nessa sobrevivência: as mulheres».
Trata-se, portanto, de uma cultura de cuidado que as mulheres cultivaram pacientemente ao longo de gerações, que terá de ser resgatada de seu lugar esquecido na história e servir de inspiração central para uma sociedade social, ecológica e humanamente sustentável e desejável. Uma das principais lições que as velhas e novas «normalidades» pandêmicas nos deixam é que foram e são as mulheres que tecem novas formas de reprodução da vida e que se afastam da «normalidade» capitalista, patriarcal e colonial. Não há alternativas ao colapso e possíveis re-existências sem olhar, perguntar e aprender com as mulheres.
Referências
Agua para los Pueblos, 2021. «Avanzada represiva en Andalgalá». Disponível em: https://www.aguaparalospueblos.org/avanzada-represiva-en-andalgala/.
Cabnal, L., 2015. «Sin ser consultadas. La mercantilización de nuestro territorio cuerpo-tierra». Em: Mujeres defendiendo el territorio. Experiencias de participación en América Latina. Bogotá, Fondo de Acción Urgente deAmérica Latina y el Caribe, pp. 43–55.
EcoFeminita, 2020a. «Crisis de cuidados en tiempos de pandemia». Disponível em: https://economiafeminita.com/crisis-de-cuidados-en-tiempos-de-pandemia/.
EcoFeminita, 2020b. «La desigualdad de género se puede medir. Datos de la Encuesta Permanente de Hogares. Primer trimestre de 2020». Disponível em: https://ecofeminita.github.io/EcoFemiData/informe_desigualdad_genero/trim_2020_01/informe.nb.html
EcoFeminita, 2020c. «La desigualdad de género se puede medir. Datos de la Encuesta Permanente de Hogares. Primer trimestre de 2020». Disponível em: https://ecofeminita.github.io/EcoFemiData/informe_desigualdad_genero/trim_2020_02/informe.nb.html
Fondo de Acción Urgente para América Latina y el Caribe (FAU-AL), 2021. Extractivismos, pandemia y otros mundos posibles. Recuperación económica y alternativas desde las defensoras del territorio en América Latina. Bogotá, FAU-AL.
Federici, S., 2017. «Diálogos entre el feminismo y la ecología desde una perspectiva centrada en la reproducción de la vida». Entrevista realizada por M. Navarro y R. Gutiérrez. Ecología Política, 54, pp. 117–120.
Federici, S., 2020. Reencantar el mundo. El feminismo y la política de los comunes. Madrid, Traficantes de Sueños.
Fundación Rosa Luxemburgo, 2020. «The Corona Chronicles. Feminismos en América Latina: Argentina». Disponible en: https://www.youtube.com/watch?v=Nyt2k2OECGA&t=201s
Herrero, Y., 2015. «Apuntes introductorios sobre el Ecofeminismo». Boletín de Recursos de Información, 43, Centro de Documentación Hegoa,pp. 1–12.
Observatorio de Femicidios de la Defensoría del Pueblo de la Nación, 2021. «Informe anual 2020. Registro de femicidios desde el 1 de enero hasta el 31 de diciembre de 2020». Disponible en: http://www.dpn.gob.ar/documentos/Observatorio_Femicidios_-_Informe_Final_2020.pdf
Pérez Orozco, A., 2014. La subversión feminista de la economía. Sobre el conflicto capital-vida. Madrid, Traficantes de Sueños.
Revista Cítrica, 2021. «La dictadura minera de Andalgalá contra las mujeres». Disponible en: https://argentina.indymedia.org/2021/10/05/la-dictadura-minera-de-andalgala-contra-las-mujeres/
Segato, R. L., 2016. La guerra contra las mujeres. Madrid, Traficantes de Sueños.
Sudré, L., 2020. «Después de 60 horas de resistencia, se desaloja campamento del MST con violencia». Brasil de Fato (14 de agosto). Disponible en: https://www.brasildefato.com.br/2020/08/14/despues-de-60-horas-de-resistencia-se-desaloja-campamento-del-mst-con-violencia
Tricontinental, 2020. «Destapar la crisis. Mapeo feminista de la pandemia». Episodio 0, «Ese gigante de pies de barro. Lado A». Disponible en: https://www.youtube.com/watch?v=6Q-FqKUof_Q