Território e Identidade: a dissociação impossível na defesa de Tacushcalco
Escrito por Ariadna Donate Duch. Publicado em 4 de fevereiro de 2021 em Ecología Política.
Traduzido por Renata Lopes. Revisado por Débora Cunha.
Resumo: Em 1932, acompanhando a erupção do vulcão Izalco, o campesinato indígena da região de Izalcos impulsionou uma revolta que terminou no etnocídio que marcou a história de El Salvador. As netas e netos dessa oposição continuam hoje a defender aquele território contra o racismo estatal e o modelo extrativista global organizados no Movimento Cidadão pela Defesa de Tacushcalco. Em 2017, a empresa Fénix S. A. de C. V. iniciou a construção do projeto urbano Acrópoli-Sonsonate no território sagrado nahuat de Tacushcalco, sem licenças ambientais ou culturais; lá, destruiu patrimônio com três mil anos de história e agravou a contaminação já existente do Rio Ceniza, gerada pela monocultura da cana-de-açúcar. A plataforma torna visível a destruição ambiental e cultural, assim como a estreita relação entre o roubo histórico das terras indígenas em Sonsonate, a degradação ambiental e a perpetuação do extermínio cultural.
A última erupção
Os índios de Izalco — disse Eduardo — estão convencidos de que no vulcão vive Tláloc, o velho deus ancião da chuva, e que do seu trono ele se rebela e ruge contra os brancos que usurparam suas terras.
(Alegría y Flakoll, 1966: 97)
As netas e os netos desse campesinato indígena que se levantou em 22 de janeiro de 1932 contra a exploração de trabalho e o roubo de terras recebem a desigualdade de herança e, com ela, a força ancestral para combatê-la. A ameaça encarnada no projeto urbanístico Acrópoli-Sonsonate para o território sagrado mesoamericado Tacushcalco espalhou as cinzas da injustiça e provocou novamente a eclosão da luta por direitos culturais e ambientais na região ancestral dos Izalcos, no departamento de Sonsonate de El Salvador. Tacushcalco em náhuat, Tacuscalco ou Tacuzcalco, em sua versão em espanhol, representa a herança ancestral de sociedades de filiação maia e dos habitantes nahuat da região. Seus três mil anos de ocupação se devem à proximidade com o Rio Ceniza, fonte de vida.
Em 2017 a empresa Inversiones e Inmobiliaria Fénix S. A. de C. V. iniciou a construção do projeto de urbanização da chamada Acrópoli-Sonsonate em trinta blocos dos quinhentos do território ancestral de Tacushcalco, adjacente ao seu centro cívico cerimonial Los Cerritos, declarado patrimônio cultural pelo Estado salvadorenho em 1997. A empresa iniciou a implantação do projeto de forma totalmente ilegal, sem ter a permissão ambiental válida nem a autorização necessária da então Secretaria de Cultura; prevista apenas com alvará de construção emitido pela Oficina de Desarrollo Urbanístico del Área Metropolitana de Sonsonate (ODU-AMSO), com base em uma licença ambiental emitida há uma década para outra empresa para outro tipo de projeto. O Ministério da Cultura decretou duas paralisações, o Ministério do Meio Ambiente e Recursos Naturais determinou uma e a Justiça Ambiental de Santa Ana mais uma, e todas foram desconsideradas pela empresa sem qualquer repercussão. Por que nenhuma instituição conseguiu parar as máquinas em Tacushcalco?
A construção afetou o ecossistema do rio e o ciclo natural de filtração de chuva. Além disso, em 2019 o projeto começou a despejar água não tratada no Rio Ceniza, impactando sua biodiversidade e a saúde das famílias vulneráveis às suas margens, como a comunidade La Bolsona, agravando ainda mais a situação de contaminação pré-existente derivada da atividade da Central Izalco, propriedade da Compañía Azucarera Salvadoreña (CASSA) (Díaz, 2019). Por outro lado, os danos patrimoniais ocasionados pela maquinaria da empresa e dos produtores de casa, são incalculáveis e irreparáveis (Rauda et al., 2018). Foi o feudalismo transmutado do país que permitiu que os direitos ambientais e culturais fossem violados com total impunidade?
Racismo, espoliação e impunidade latentes
Em 1524 o colonizador Pedro de Alvarado viu, do alto de um dos montes de Tacushcalco, suas tropas à beira de serem derrotadas pelos Nahuat, conforme relatado em sua II Carta de Relacionamento. Os invasores impuseram a propriedade privada como nova forma de posse da terra, tirando da população indígena o autogoverno de seu território. A terra perdeu o sentido de meio para a satisfação de necessidades e garantia de direitos e adquiriu o de meio de produção para o mercado. A colônia inaugurou a eterna noite do extrativismo e do racismo em El Salvador. A estrutura de trabalho foi transformada de trabalho livre e comunitário para trabalho «feudal forçado» (encomiendas) e «trabalho assalariado forçado» (repartimentos). Somente algumas comunidades conservaram domínios a modo de concessão e quatro séculos depois a demanda de novas zonas para o cultivo de café, entre outros fatores, deu lugar a reforma agrária liberal de 1881–1882 que suprimiu as terras comunais dos coletivos indígenas e os ejidos das populações ladinas, tornando crônica a situação de degradação e exploração ambiental. (Montanhas, 1986).
O feudalismo e os maus tratos às plantações de índigo foram o prelúdio da insurreição dos nonualcos, em 1833, e essas condições, bem como a espoliação da população indígena dos Izalcos, desencadearam a revolta indígena de 1932 que se tornou o etnocídio de quinze a trinta mil pessoas justificado pelo Estado pela perseguição ao comunismo (Alvarenga, 2006). A acumulação originária da colônia e do período cafeeiro continua impossibilitando a reversão do sistema de dominação-exploração e parece que mais de cinco séculos não foram suficientes para fazer jus à redistribuição da terra.
O caso Tacushcalco é a enésima expressão desse ciclo perpétuo de desapropriação territorial e da subsequente insurreição popular que impulsionada pelo racismo e pela corrupção. A omissão de responsabilidades por parte do Estado evidencia uma estratégia de violência cultural ininterrupta contra os povos, materializada, neste caso, na não aquisição de terras declaradas bem cultural, razão pela qual a maquinaria pesada utilizada pelos produtores de cana continua a destruir estruturas e material cultural já afetado por cinquenta anos de plantio. Quase um século após a revolta de 1932, esse terrorismo de Estado sofreu mutações, mas permanece, as ações da empresa obviamente transgrediram uma multiplicidade de direitos culturais e ambientais com total impunidade. A corrupção teria manchado todos os níveis de governo, desde a esfera municipal, com ações dos prefeitos de Nahulingo e Sonsonate, até a esfera nacional, quando a Assembléia Legislativa criou uma comissão especial para o caso e propôs uma reforma legislativa disfarçada de interpretação autêntica da cláusula 2 do artigo 8.º da Lei Especial de Protecção do Património Cultural (Leppces) que visava reduzir as competências do Ministério da Cultura. Essa proposta foi interrompida por um veto presidencial em resposta à pressão popular. A estreita relação entre o então vice-presidente da República, Oscar Ortiz, e os sócios da Fénix deu total impunidade à empresa (Díaz, 2019). Nesse cenário, o que desencadeou uma nova erupção de resistência duas gerações depois de ‘32?
A resistência incandescente
A Mesa por la Sustentabilidad de los Territorios de Sonsonate (Mesutso) notificou o Tribunal Ambiental de Santa Ana em janeiro de 2018, devido à uma preocupação da população com a possibilidade de o conjunto residencial derramar a água não tratada no rio, impulsionando a articulação pelo caso. Em 6 de abril do mesmo ano, comunidades, organizações indígenas, ambientais e sociais se reuniram em frente ao Tribunal de Paz de Nahulingo em uma das primeiras ações do Movimento Cidadão em Defesa de Tacushcalco e da plataforma Río Ceniza. Seu sentido de ser é narrado em seu manifesto da seguinte forma:
Essa causa vem nos conectando com a importância de lutar contra o modelo neoliberal que nos empurra para a hegemonia cultural em detrimento de nossa identidade original, à pobreza, à autodestruição, e tenta exterminar nossa identidade, história e natureza.[1]
Sua notável natureza apartidária, autônoma e autogerida adotou a plataforma da liberdade, apesar da disponibilidade de escassos recursos econômicos que limitaram a possibilidade de ação judicial no caso. Por outro lado, dirigentes territoriais e funcionários do Ministério da Cultura que cumpriram mandato foram processados pela empresa e foram criminalizados.
O Movimento Tacushcalco explica a situação de perpétua injustiça da região na relação entre roubo histórico de terras, degradação ambiental e extermínio cultural. A defesa etnoambiental surge com força quando as reivindicações territoriais e ambientais tornam-se catalisadoras da luta identitária e da ressignificação da memória histórica. Por outro lado, as estruturas do Estado, seus instrumentos legislativos e até a própria organização social buscam promover a dissociação entre meio ambiente e cultura, entre território e identidade.
A simbiose entre reivindicações culturais e ambientais ficou evidente na primeira cerimônia de solstício realizada em dois séculos em Tacushcalco, segundo a população. O mundo rural e o urbano, o técnico e o camponês, o jovem e o velho convergiam em torno do fogo. Inúmeros jovens urbanos também responderam ao convite, apesar do apagamento identitário, sentindo-se desafiados pela causa e decidindo assumi-la, o que dá início a um processo etnogenético que confronta a dominação e o esquecimento. O fogo reunido nesse espaço simbólico de pertencimento e celebração torna-se uma fórmula subversiva de reapropriação do lugar, conhecimento do território, cultivo da identidade em perigo e cura da ferida histórica penetrante.
A cratera: a ferida aberta
No romance Cenizas de Izalco, a cratera de Izalco é comparada a uma ferida aberta (Alegría y Flakoll, 1966:156). As condições de desigualdade e injustiça permanecem latentes, gerando pressão para que o magma volte a explodir para reabrir a ferida ciclicamente até conseguirmos mudar o sistema.
Apesar das resistências, o fraco arcabouço institucional do Estado permitiu que o projeto urbano fosse concluído e habitado neste momento. Os processos judiciais abertos não deduziram responsabilidades e o caso segue em investigação na instância ambiental, na Procuradoria Geral da República e no Tribunal de Condenação de Sonsonate. A mobilização popular conseguiu que o Ministério da Cultura estendesse a declaração de bens culturais de quarenta e sete para um total de quinhentos blocos em 26 de novembro de 2019. O movimento reivindica a desapropriação de todas as terras para promover um projeto de dignificação do território sagrado, consistindo na criação de um centro vivo para a preservação da memória e da identidade ancestral. Além disso, apesar da gravidade das violações, o propósito de apresentar o caso perante os órgãos internacionais continua frustrado pela falta de recursos para promovê-lo. Por outro lado, essa luta tem sido um precedente em Sonsonate da organização com foco etnoambiental para o enfrentamento de outros conflitos, como a oitava barragem do rio Sensunapán e o desmatamento da área superior desta mesma bacia.
Do alto de qualquer um dos montes sagrados de Tacushcalco, pode-se ver a expressão do que esta empresa, com o nome de um pássaro mitológico ocidental renascido das cinzas, reviveu em Tacushcalco: extrativismo, esquecimento, racismo e desapropriação. Mas por trás do cimento se ergue a silhueta do vulcão Izalco, que sempre lembra as netas e netos da geração de 32 de sua missão ancestral herdada: lutar para curar aquela ferida histórica, recuperar o governo de seu território ancestral e promover outra forma de viver a sua identidade e habitar o Tunantal (nossa mãe terra). Será que Tlaloc vai acordar de novo?
Referências
Alcantar, S., 2018. «Volcán y lucha social: el símbolo del volcán en Cenizas de Izalco y algunos poemas de Claribel Alegría». Istmo. Revista Virtual de Estudios Literarios y Culturales Centroamericanos, 36, pp. 130–144. 0
Alegría, C y Flakoll, D, 1966. Cenizas de Izalco. Barcelona, Ed. Seix Barral.
Alvarenga, P., 2006. Cultura y ética de la violencia. El Salvador 1880–1932. San José, Educa.
Díaz, M., 2019. «Convivir con las heces fecales que desecha Acrópolis». Revista Gato Encerrado. Disponível em: https://gatoencerrado.news/2019/07/12/convivir-con-las-heces-fecales-que-desecha-acropolis/, consultado el 18 de noviembre de 2020.
Díaz, M.y Beltrán M., 2019. «Funcionarios del FMLN intentaron favorecer a Fénix en Tacuscalco » Revista Gato Encerrado. Disponível em: https://gatoencerrado.news/2019/06/12/funcionarios-del-fmln-intentaron-favorecer-a-fenix/, consultado el 24 de noviembre de 2020.
Montes, S., 1986. El Salvador: la tierra, epicentro de las crisis. San Salvador, UCA.
Movimiento Tacushcalco, 2018. Manifiesto por la defensa de Tacushcalco y el río Ceniza. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1kbhVodlX42WXanQFlo4V0Uhfcci2cWsX/view?usp=sharing, consultado el 23 de noviembre de 2020.
Rauda, N., E. Lemus y C. Dada, 2018. «Nada detiene los tractores en Tacushcalco». El Faro. Disponível em: https://elfaro.net/es/201804/el_salvador/21721/Nada-detiene-los-tractores-en-Tacuscalco.htm, consultado el 18 de noviembre de 2020.
A autora é integrante do Movimiento Ciudadano por la Defensa de Tacushcalco y el río Ceniza. E-mail: ariadnadonate@gmail.com
Esse artigo foi elaborado de maneira conjunta com a coordenação do Movimento Tacushcalco. E-mail: movimientotacushcalco@gmail.com
[1] Movimiento Tacushcalco, 2018. Manifiesto por la defensa de Tacushcalco y el río Ceniza. Disponnível en: https://bit.ly/37Bw8UO