Relatório da ONU lista os lugares mais poluídos do mundo
Por Ian Angus. Publicado em 13.03.2022 em Climate and Capitalism.
Traduzido por Débora Cunha.
A poluição mata mais pessoas do que todas as guerras, assassinatos e outras formas de violência combinadas
O Relator Especial das Nações Unidas sobre direitos humanos e meio ambiente identificou os lugares mais poluídos do planeta. Em seu relatório anual ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, David Boyd descreve esses lugares como Zonas de Sacrifício, um termo originalmente usado para áreas inabitáveis por testes de armas nucleares.
Ele escreve: “Hoje em dia, uma zona de sacrifício pode ser entendida como um lugar onde os moradores sofrem consequências devastadoras para a saúde física e mental e violações dos direitos humanos como resultado de viver em focos de poluição e áreas altamente contaminadas. A crise climática está criando uma nova categoria de zonas de sacrifício como resultado das emissões ininterruptas de gases de efeito estufa, à medida que as comunidades se tornaram e estão se tornando inabitáveis devido a eventos climáticos extremos ou desastres de início lento, incluindo seca e aumento do nível do mar”.
“A existência persistente de zonas de sacrifício é uma mancha na consciência coletiva da humanidade. Muitas vezes criadas através do conluio de governos e empresas, as zonas de sacrifício são diametralmente opostas ao desenvolvimento sustentável, prejudicando os interesses das gerações presentes e futuras. As pessoas que habitam as zonas de sacrifício são exploradas, traumatizadas e estigmatizadas. Elas são tratados como descartáveis, suas vozes ignoradas, sua presença excluída dos processos de tomada de decisão e sua dignidade e direitos humanos pisoteados”.
Todos os anos, “poluição e substâncias tóxicas causam pelo menos 9 milhões de mortes prematuras, o dobro do número de mortes infligidas pela pandemia de COVID-19 durante seus primeiros 18 meses. Uma em cada seis mortes no mundo envolve doenças causadas pela poluição, três vezes mais do que as mortes por AIDS, malária e tuberculose juntas e 15 vezes mais do que todas as guerras, assassinatos e outras formas de violência.”
O fardo da contaminação recai desproporcionalmente sobre os ombros de indivíduos e comunidades que já sofrem com a pobreza, a discriminação e a marginalização sistêmica. “Mulheres, crianças, minorias, migrantes, povos indígenas, idosos e pessoas com deficiência são potencialmente vulneráveis…. Os trabalhadores, especialmente em países de baixa e média renda, estão em risco devido a exposições elevadas em seus empregos, más condições de trabalho, conhecimento limitado sobre riscos químicos e falta de acesso a cuidados de saúde. Milhões de crianças estão empregadas em setores potencialmente perigosos, incluindo agricultura, mineração e curtumes. Habitações de baixa renda podem conter amianto, chumbo, formaldeído e outras substâncias tóxicas.”
O texto completo do relatório para a 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU pode ser baixado aqui. A seguir está a seção de seu relatório que destaca as zonas de sacrifício ao redor do mundo:
As instalações mais poluentes e perigosas, incluindo minas a céu aberto, fundições, refinarias de petróleo, fábricas de produtos químicos, usinas a carvão, campos de petróleo e gás, usinas siderúrgicas, lixões e incineradores de resíduos perigosos, bem como agrupamentos dessas instalações, tendem a se localizar nas proximidades de comunidades pobres e marginalizadas. A saúde, a qualidade de vida e uma ampla gama de direitos humanos são comprometidos, ostensivamente por “crescimento”, “progresso” ou “desenvolvimento”, mas na realidade para servir a interesses privados. Os acionistas de empresas poluidoras se beneficiam de lucros maiores, enquanto os consumidores se beneficiam com energia e bens de baixo custo. Prolongar os empregos dos trabalhadores em indústrias poluentes é usado como uma forma de chantagem econômica para retardar a transição para um futuro sustentável, enquanto o potencial dos empregos verdes é injustificadamente desconsiderado.
A existência persistente de zonas de sacrifício é uma mancha na consciência coletiva da humanidade. Muitas vezes criadas através do conluio de governos e empresas, as zonas de sacrifício são diametralmente opostas ao desenvolvimento sustentável, prejudicando os interesses das gerações presentes e futuras. As pessoas que habitam as zonas de sacrifício são exploradas, traumatizadas e estigmatizadas. Elas são tratados como descartáveis, suas vozes ignoradas, sua presença excluída dos processos decisórios e sua dignidade e direitos humanos pisoteados. Zonas de sacrifício existem nos Estados ricos e pobres, Norte e Sul, conforme descrito nos exemplos abaixo. As descrições das zonas de sacrifício adicionais estão contidas no Anexo I.
África
Em Kabwe, Zâmbia, 95 por cento das crianças sofrem de níveis elevados de chumbo no sangue causados pela mineração e fundição de chumbo. Especialistas descreveram a situação como uma grave crise de saúde ambiental, e Kabwe foi apontada como um dos lugares mais poluídos da Terra. A exposição ao chumbo durante a infância prejudica o desenvolvimento neurológico, causando déficits cognitivos ao longo da vida. Níveis extremamente altos de exposição, como os observados em Kabwe, podem causar cegueira, paralisia e morte.
A população do Delta do Níger, na Nigéria, convive há décadas com a poluição do petróleo e a queima de gás, resultando em graves problemas de saúde física e mental causados por ar, água e alimentos contaminados. Os efeitos adversos à saúde da exposição à poluição do petróleo incluem anormalidades nas funções sanguínea, hepática, renal, respiratória e cerebral, bem como ataques de asma, dores de cabeça, diarréia, tontura, dor abdominal e dor nas costas. A expectativa média de vida para os residentes do Delta do Níger é de apenas 40 anos, em comparação com 55 anos para a Nigéria como um todo.
Em 2006, milhares de pessoas em Abidjan, Costa do Marfim, foram afetadas e 15 mortas pelo despejo ilegal de resíduos tóxicos contendo altos níveis de sulfeto de hidrogênio despejados pelo navio Probo Koala.
Uma revisão dos prontuários hospitalares de mais de 10.000 pacientes determinou que os principais impactos incluíam problemas respiratórios (como tosse e dores no peito) e sintomas digestivos (como dor abdominal, diarreia e vômitos).
Ásia e a região do Pacífico
Níveis astronômicos de poluição do ar prejudicaram a saúde de bilhões de pessoas na Ásia. A maioria das cidades mais poluídas do mundo está na China e na Índia. Em Nova Délhi, o smog [neblina tóxica] espesso provocou um fechamento de semanas de todas as escolas em novembro de 2021, com níveis de material particulado fino (PM2,5) 20 vezes maior que o limite diário máximo recomendado pela OMS.
A China extrai a maioria dos minerais de terra raras do mundo, elementos usados em produtos como veículos elétricos, turbinas eólicas e telefones celulares. Esses minerais são extraídos em Bayan Obo e processados em Baotou, uma cidade próxima. A qualidade do ar é muito ruim e as emissões tóxicas causam um risco substancial de câncer de pulmão para os moradores locais, especialmente crianças.
Os moradores têm níveis elevados de minerais de terras raras (lantânio, cério e neodímio) no sangue, urina e cabelo. Concentrações elevadas de metais pesados na poeira e no solo ameaçam a saúde das população..
As pessoas nas Ilhas Marshall, no Cazaquistão, em Chernobyl, na Ucrânia, e em Fukushima, no Japão, continuam a sofrer os efeitos adversos da radiação de testes nucleares e desastres em reatores nucleares. Entre 1946 e 1958, os Estados Unidos testaram mais de 60 armas nucleares em ou perto dos atóis de Bikini e Enewetak, nas Ilhas Marshall, resultando em níveis elevados de câncer, defeitos congênitos e trauma psicológico que continuam até hoje. Mulheres e meninas marshalesas sofrem desproporcionalmente de câncer de tireoide e outros cânceres, assim como de problemas de saúde reprodutiva. A antiga União Soviética realizou 456 explosões de testes nucleares na antiga região de Semipalatinsk (agora Semey, Cazaquistão). As pessoas da região, vivendo na pobreza e não informadas sobre os testes, foram expostas a altos níveis de radiação, levando a um grande número de defeitos congênitos, taxas elevadas de câncer e extenso trauma psicológico.
Leste Europeu
Bor, na Sérvia, é uma das cidades europeias mais poluídas, em grande parte por causa de um enorme complexo de mineração e fundição de cobre que emite grandes quantidades de dióxido de enxofre, particulados, arsênico, chumbo, zinco e mercúrio. O PNUMA [Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente] descreveu um legado devastador de problemas ambientais, com concentrações de dióxido de enxofre ocasionalmente excedendo a faixa de medição do equipamento de monitoramento. O rio Borska Reka está tão contaminado com metais pesados que os especialistas o descreveram como sem qualquer vestígio de vida. Os trabalhadores metalúrgicos têm altos níveis de arsênico em seus cabelos e urina, com quase 80% sofrendo de uma média de duas doenças crônicas.
Norilsk está entre as cidades mais poluídas da Federação Russa, sofrendo de níveis muito altos de poluição do ar, chuva ácida, poluição da água e contaminação do solo. A principal fonte de poluição é a empresa de mineração e fundição Norilsk Nickel, que causou um vazamento catastrófico de diesel em 2020 afetando o rio Pyasina. Níveis muito altos de metais pesados foram encontrados em peixes, musgos, solo e neve na região. As comunidades mais afetadas são os povos indígenas de Taymyr, que enfrentam altas taxas de doenças respiratórias, câncer, sistema imunológico enfraquecido, partos prematuros, falhas reprodutivas, aumento da mortalidade infantil e expectativa de vida 10 anos abaixo da média nacional.
Embora o aterro Pata Rât em Cluj-Napoca, na Romênia, tenha sido fechado em 2015, milhares de pessoas ciganas marginalizadas ainda vivem na área, considerada um dos piores lixões da Europa. Eles não têm acesso a água potável, saneamento ou moradia digna, levando pesquisadores a descrever Pata Rât como um cenário desolador de desumanização. As pessoas estão expostas ao arsênico, benzeno, cádmio, cromo, creosoto, dioxinas, hexano, sulfeto de hidrogênio, chumbo, mercúrio, estireno e zinco. Os moradores relatam sofrer de infecções nos ouvidos, olhos e pele, asma, bronquite, pressão alta, câncer e doenças cardíacas, hepáticas e estomacais..
Amárica Latina e Caribe
Quintero-Puchuncaví, a zona de sacrifício mais notória do Chile, abriga o complexo industrial de Ventanas, composto por mais de 15 empresas industriais (refinarias de petróleo, instalações petroquímicas, usinas a carvão, terminais de gás e fundição de cobre). Em 2018, um grande incidente de poluição do ar em Quintero-Puchuncaví deixou centenas de crianças em idade escolar doentes. No processo de revisão periódica universal, a equipe nacional das Nações Unidas recomendou que o Chile investigasse os efeitos negativos sobre os habitantes das zonas de sacrifício, acelerasse a implementação de programas de remediação e desenvolvesse padrões de qualidade ambiental de acordo com os padrões internacionais da OMS. A Suprema Corte do Chile concluiu que a notória poluição do ar em Quintero-Puchuncaví violou o direito a um ambiente livre de poluição e ordenou que o governo tome medidas para resolver o problema.
Em La Oroya, Peru, gerações de crianças foram envenenadas por uma enorme fundição de chumbo. Um chocante 99 por cento das crianças têm níveis de chumbo no sangue que excedem os limites aceitáveis. Apesar das intervenções da Corte Constitucional do Peru e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os níveis de contaminação em La Oroya continuam perigosos. Também localizada no Peru, em Cerro de Pasco, há uma enorme mina a céu aberto adjacente a uma comunidade pobre exposta a níveis elevados de metais pesados. Em 2018, o governo do Peru declarou estado de emergência em Cerro de Pasco por causa da poluição, mas as crianças da região continuam sofrendo efeitos adversos à saúde.
Água e solo em Guadalupe e Martinica, França, estão contaminados por níveis inseguros do pesticida clordecona. Embora a fabricação e uso deste pesticida tenha sido proibido na década de 1970 nos Estados Unidos, ele continuou a ser usado nas Índias Ocidentais durante a década de 1990. Os moradores ainda estão expostos à clordecona através da água potável e dos alimentos que cultivam devido à persistência do agrotóxico no meio ambiente. Noventa por cento das pessoas que vivem em Guadalupe e Martinica têm clordecona no sangue, aumentando o risco de câncer.
Os depósitos de lixo em vários países do Caribe são regularmente incendiados, apesar da presença de plásticos, pneus usados e outros itens que geram produtos químicos extremamente perigosos quando queimados. Essa prática cria nuvens maciças e persistentes de fumaça tóxica que envolvem os moradores vizinhos e prejudicam sua saúde. Exemplos incluem os aterros em Parkietenbos em Aruba, (Holanda), Riverton (Jamaica) e Truitier (Haiti). Um grande incêndio no lixão de Riverton, na Jamaica, em 2015, levou ao fechamento de 50 escolas e a centenas de pessoas hospitalizadas.
Europa Ocidental e América do Norte
Um dos pontos de poluição mais notórios do Canadá — “Chemical Valley”, em Sarnia, Ontário — tem efeitos perturbadores para a saúde da Primeira Nação Aamjiwnaang. Existem mais de 40 grandes instalações petroquímicas, poliméricas, de refino de petróleo e químicas nas proximidades de Aamjiwnaang, bem como uma usina a carvão. Esta comunidade indígena sofre com a pior qualidade do ar no Canadá. Problemas de saúde física e psicológica são comuns, incluindo altas taxas de abortos espontâneos, asma infantil e câncer.
Nos Estados Unidos, as taxas de câncer em comunidades predominantemente negras são muito mais altas do que a média nacional, como por exemplo em Mossville, St. Gabriel, St. James e St. John the Baptist, distritos localizados no “Cinturão do Câncer” da Louisiana, que abriga mais de 150 refinarias e usinas petroquímicas, incluindo o maior produtor mundial de isopor. As grandes instalações industriais poluentes dos Estados Unidos estão localizadas desproporcionalmente em comunidades com as maiores porcentagens de afrodescendentes, as menores rendas familiares e a maior proporção de residentes que não concluíram o ensino médio. Um importante estudioso escreveu que, “habilitado pelo zoneamento estadual, uma onda de usinas químicas caiu sobre comunidades afro-americanas como uma bomba”.
O Cinturão do Câncer contém 7 dos 10 setores censitários dos Estados Unidos com o maior risco de câncer devido à poluição do ar. Em 2020, as concentrações de cloropreno (causador de câncer) no ar do distrito de St. John the Baptist foram 8.000 vezes maiores do que o nível aceitável estabelecido pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos.
A usina siderúrgica Ilva, em Taranto, Itália, comprometeu a saúde das pessoas e violou direitos humanos por décadas, liberando grandes volumes de poluição tóxica no ar. Moradores próximos sofrem de níveis elevados de doenças respiratórias, doenças cardíacas, câncer, doenças neurológicas debilitantes e mortalidade prematura. As atividades de limpeza e remediação que deveriam começar em 2012 foram adiadas para 2023, com o Governo introduzindo decretos legislativos especiais permitindo que a usina continue operando. Em 2019, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos concluiu que a poluição ambiental continuava, colocando em risco a saúde dos requerentes e, de forma mais geral, de toda a população que vive nas áreas de risco.
Os exemplos anteriores de zonas de sacrifício representam alguns dos lugares mais poluídos e perigosos do mundo, ilustrando violações flagrantes de direitos humanos, particularmente de populações pobres, vulneráveis e marginalizadas. As zonas de sacrifício representam o pior abandono imaginável da obrigação de um Estado de respeitar, proteger e garantir o direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável.