Reflexões Revolucionárias | Em direção a um Leninismo Ecológico: Parte II
Por Gus Woody. Publicado em 18 de dezembro de 2020 em RS21.
Traduzido por Débora Cunha e revisado por André Gavasso.
Para começar a desenvolver uma concepção mais ampla do leninismo ecológico, para construir sobre as excelentes intervenções desses autores, gostaria de sugerir diversas áreas do pensamento de Lenin que podemos reinterrogar com uma visão ecológica — o Estado, a relação entre movimento, trabalhadores e partido, a centralidade do imperialismo e, finalmente, preocupações mais amplas com a filosofia da natureza e da ciência. A elaboração e o desenvolvimento da ecologia marxista nessas áreas podem fornecer a base para um movimento ecossocialista revolucionário, e certamente isso não é tarefa para apenas um escritor. Como resultado, o que se segue é uma tentativa de indicar possíveis percursos baseados em Malm, Dean e Heron e Wall e que, espero, fornecerão à nossa sociedade algo com o que enfrentar a crise que se aproxima.
1: O Estado
Um século depois de O Estado e a Revolução, o Estado capitalista de que Lênin falou está diferente em muitos aspectos.12 Ao longo do século XX, países como o Reino Unido viram um aumento maciço na propriedade estatal e na prestação de serviços, como o NHS (sistema público de saúde britânico). Por outro lado, desde a década de 1970, muitas nações viram um aumento contínuo na privatização, com ‘parcerias público-privadas’ entre empresas e o Estado atingindo seu apogeu doentio no Reino Unido com o clientelismo de contratos importantes em relação ao coronavírus sendo terceirizados para amigos e familiares de membros conservadores do parlamento. Além disso, o surgimento de cadeias de suprimentos globais e de novos organismos internacionais para a interação dos Estados capitalistas criou um mundo onde os Estados estão cada vez mais emaranhados e co-dependentes, criando desafios para qualquer teoria revolucionária que almeje um impacto global.13 Há, portanto, uma necessidade urgente de analisar a natureza de classe dos Estados capitalistas modernos, identificando onde e como a classe trabalhadora revolucionária está em melhores condições de se organizar contra isso.
Felizmente, a teorização marxista em torno do Estado não parou desde os dias de Lênin. Houve Althusser,14 Gramsci,15 e o debate de Miliband-Poulantzas sobre o caráter de classe do Estado,16 bem como o surgimento de abordagens marxistas abertas.17 Como resultado, nas palavras de Khachaturian, ‘a teoria do Estado marxista é em grande parte uma estrutura de pesquisa aberta e intelectualmente pluralista’.18 Embora eu não pretenda comentar sobre essas diferentes teorias, desejo apontar certas considerações que sugerem a urgência de uma teoria ecológica leninista do Estado.
Primeiramente, sobre a questão levantada tanto pelos proponentes do NAV quanto pelos autores leninistas ecológicos já discutidos — o aparato estatal tem um potencial significativo para ser usado como um instrumento para uma rápida descarbonização.
No entanto, e é aqui que os relatos anteriores ainda têm um caminho a percorrer, é importante entender o Estado como produto de um antagonismo de classe irreconciliável. Com o artigo de Dean e Heron não explorando a necessidade de destruir o Estado, e Malm rejeitando isso completamente, a questão de qual forma o controle proletário assume é crucial. O leninismo ecológico requer foco na fase de transição — a ditadura do proletariado, que como Lênin afirmou, “criará democracia para o povo, para a maioria, junto com a necessária supressão da minoria.”
No período de rápida descarbonização que o leninismo ecológico visa proporcionar, existe o duplo problema de criar o controle dos trabalhadores sobre a sociedade e a dificuldade de garantir que as forças do capital fóssil não exerçam influência. No primeiro caso, da expansão da democracia proletária, há muito o que a tradição leninista deve aprender com a experiência bolchevique e as maneiras pelas quais as tradições de controle operário, como o comunismo de conselhos, a criticaram. Este é um esforço valioso se usado para afastar o ambientalismo da concepção liberal de “assembléias do clima” e para aproximá-lo de conselhos do clima e sovietes de trabalhadores. É aqui que o trabalho de Wall e de outros marxistas sobre construção de base é crucial, assim como aqueles que falam seriamente sobre a construção de instituições de controle proletário. Em última análise, o leninismo ecológico significa aprender com as falhas das revoluções anteriores em criar instituições capazes de cobrar a responsabilidade do Estado burguês e desmantelá-lo por meio de explicações práticas e teóricas das lutas contemporâneas, nas quais vemos o controle dos trabalhadores emergindo.
Sobre a segunda questão, da supressão, os socialistas devem reconhecer que se um movimento revolucionário tomar o poder do Estado sem contínuas mobilizações internacionais, qualquer esforço de descarbonização enfrentará novos inimigos do capitalismo global — o FMI, o Banco Mundial, etc. É crucial estudar de que forma essas instituições foram mobilizadas contra os Estados socialistas e social-democratas, já que, além dos exércitos e governos imperialistas, esses órgãos atacarão qualquer regime leninista ecológico. A solidariedade ecossocialista internacional é crucial, já que a repressão dos inimigos de um ecossocialismo revolucionário corre o risco de fazer de um regime leninista ecológico uma ilha em um mar hostil. Nesta situação, a necessidade de estabilidade no período de transição pode levar os leninistas não apenas a suprimirem seus exploradores, mas também qualquer elemento de esquerda que exija mais do regime, tornando-se uma cobra que se alimenta do próprio rabo. Em suma, como prevenir uma autarquia violenta enquanto os regimes se constroem para uma revolução ecossocialista global é uma questão urgente.
Em última análise, a importância de uma compreensão leninista ecológica do Estado será a de efetivamente traçar uma linha entre socialistas revolucionários e elementos conciliados dentro do movimento ambientalista mais amplo que precisam ser conquistados para a causa revolucionária.19 Nos últimos anos, ambientalistas de esquerda no Reino Unido e nos Estados Unidos se comprometeram com movimentos que buscam a eleição de candidatos para o poder estatal na esperança de agir contra a crise climática. O fracasso desses movimentos aponta o encerramento da rota eleitoral para a ação climática através das instituições do Estado burguês, o que exige um ajuste de contas com o caráter de classe do Estado. Dada a necessidade da velocidade de Malm como uma virtude suprema, os leninistas devem aproveitar essas experiências para começar a elaborar o confronto de seu próprio programa com a besta que é o aparelho de Estado.
2: O Partido, o Movimento e o Agente
Isso aponta para uma outra questão urgente quando nos encaminhamos para um leninismo ecológico, sobre a qual os autores precedentes variam — a organização dos socialistas revolucionários e suas relações com os movimentos de massa. Em particular, os leninistas ecológicos estão divididos quanto à questão do partido. Dean e Heron são claros quanto a seu desejo por um partido leninista ecológico, Malm lê o leninismo ecológico como uma coleção de princípios que não implicam a existência de um partido de fato, Wall foca na necessidade de organização de base ao invés de qualquer partido formal. Isso reflete uma crise mais ampla entre os socialistas revolucionários, que se estendeu pelo longo século XX até o século XXI, a do “partido leninista” e dos diferentes modelos organizacionais propostos para os revolucionários.
Fora os apelos de Dean e Heron por um partido, tanto Climate Strike de Wall quanto o próximo livro de Malm, How to Blow up a Pipeline [Como Explodir um Oleoduto, em tradução livre] se concentram no envolvimento com a variedade de estratégias que os ambientalistas podem adotar para interromper o capital fóssil. Embora ambas sejam certamente contribuições cruciais, assim como Lênin protestou contra as estratégias economicistas e terroristas de simplesmente se organizar em torno de conflitos no local de trabalho ou conduzir ações violentas isoladas, ainda há o difícil problema de criar uma forma organizacional com perspicácia estratégica que transcenda os limites de ambos.
Contra Malm, que em Chronic Emergency fala da ‘pressão popular exercida’ sobre o Estado, há uma necessidade de refletir sobre como essa ‘pressão popular’ não será cooptada por forças oportunistas, permanecendo revolucionária, internacional e ecossocialista em seu conteúdo e forma. Assim como Lênin em O que fazer? aponta para a necessidade de os marxistas se organizarem para garantir que a luta econômica não seja vista como subserviente à necessidade de se organizar e agitar pelo socialismo revolucionário; hoje, simplesmente esperar pelo crescimento do radicalismo na luta ecológica é insuficiente. Somente por meio de tentativas de agitação e organização enquanto corpo de socialistas revolucionários é que essas lutas poderão ser convertidas em um confronto com o capital fóssil. Mas se rejeitarmos a leitura de Lênin como construtor de partidos, como fazem muitos ecossocialistas contemporâneos, onde isso nos deixa?
Aqui, há uma necessidade urgente dos leninistas ecológicos se engajarem criticamente com as falhas organizacionais dos grupos que adotaram a bandeira bolchevique no longo século, desde 1917. Após um século em que os aspectos centralistas do centralismo democrático foram manejados brutalmente, agora, mais do que nunca, é um tempo para o desenvolvimento camarada, mas disciplinado, da organização socialista revolucionária. Ou nas palavras de Gittlitz, refletindo sobre o estranho caso da Internacional Posadista:
O desafio, então, não é recriar os movimentos revolucionários do passado, nem revisar totalmente sua história, mas salvar a verdade funcional de sua missão para a luta que está por vir.20
Seria negligência de qualquer socialista ecológico ignorar o trabalho pioneiro dos primeiros ambientalistas anticapitalistas como Bookchin, cuja ecologia social era profundamente crítica das formações partidárias leninistas, trotskistas e outras formações partidárias socialistas à medida que surgiam nos Estados Unidos.21 Bookchin, é claro, sentia-se igualmente confortável criticando as formas organizacionais anarquistas, tentando orientar um rumo entre o marxismo e o anarquismo. Assim como a Comuna de Paris foi instrutiva para Marx e Lênin, os leninistas ecológicos modernos deveriam considerar a organização da revolução e do Estado em Rojava, inspirados por Bookchin e Ocalan.22 Rojava contém lições sobre como encontrar um equilíbrio entre as necessidades de democracia direta e de um quadro disciplinado, apontando as muitas maneiras em que essas necessidades não são necessariamente contraditórias. Este é apenas um dos muitos ‘regimes ecológicos’ que estão tentando crescer hoje em dia e que devem ser usados para inspirar e desenvolver o leninismo contemporâneo.
Dada a natureza frequentemente rápida da rebelião e da mudança social de forma geral, surge a dificuldade de como qualquer organização leninista se relaciona com as ações espontâneas da classe trabalhadora e de outras formações sociais. O que tem impedido a análise dessa questão por muitos setores é a tendência geral de ambientalistas se sentirem desconfortáveis em usar a análise de classe ao propor agentes essenciais para um movimento revolucionário. Um dos primeiros pensadores ecossocialistas, Andre Gorz, notoriamente disse Adeus à Classe Trabalhadora [referência ao título do livro de Gorz, Farewell to the Working Class], como fez Bookchin à sua maneira em Listen Marxist! [Ouça, marxista!, em tradução livre].23 Isso refletiu a realidade de que a “classe trabalhadora industrial”, uma criação estereotipada tanto pela esquerda quanto pela direita, se fragmentou e se reformou na economia cada vez mais global.
Mesmo assim, reconhecer que a classe trabalhadora e os camponeses de 1917 são diferentes da classe trabalhadora e dos camponeses de 2020 não deveria intimidar os leninistas, mas inspirar um maior desenvolvimento do pensamento marxista e de nosso programa. Hoje temos tradições sobre o capitalismo racial, a teoria da reprodução social e muito mais para explicar e identificar o potencial revolucionário em toda a classe trabalhadora global. Com isso, surgem novos espaços para intervir, agitar e formar solidariedade para a organização de um movimento revolucionário global. A luta ecológica oferece uma oportunidade para reformular alianças entre camponeses, trabalhadores, defensores da terra, estudantes e outros povos explorados, criando novos caminhos para analisar e promover a mudança no equilíbrio de forças de classe necessária para uma situação revolucionária.
Vemos vislumbres disso no que Naomi Klein chama de ‘Blockadia’, as coalizões de estudantes, esquerdistas e, muitas vezes, defensores das terras indígenas que se opõem à nova infraestrutura de combustível fóssil.24 Transformar essa oposição a pedaços específicos da infraestrutura dos combustíveis fósseis em uma oposição total e internacional ao capitalismo fóssil é crucial. Um trabalho recente e instrutivo nesta área é o de Arboleda, cujos estudos das cadeias de abastecimento da indústria mineradora no Chile apontam para o surgimento de um potencial revolucionário entre os camponeses que estão sendo proletarizados pela mineração, os trabalhadores extrativos racializados e confrontados com a terceirização e movimentos mais amplos pela soberania indígena.25
Não há respostas fáceis para as questões dos agentes revolucionários e organizações revolucionárias, as quais os leninistas de vários matizes têm enfrentado com resultados mistos nos últimos cem anos. No entanto, ao invés de rejeitar a preocupação ou cair no velho chamado pelo “partido”, os leninistas ecológicos devem superar as contradições da organização em um mundo em aquecimento, com o peso de mil projetos fracassados sobre nossas cabeças. Talvez o melhor resumo deste projeto tenha sido feito por Mohandesi:
Sugiro que pensemos no “partido” como uma organização entre outras, definida por sua função articuladora, como aquela que une forças sociais díspares, une lutas ao longo do tempo e facilita o projeto coletivo de construção do socialismo para além do Estado.26
Notas
12. Lênin, O Estado e a Revolução, 1918 — https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1917/staterev/
13. Esses temas são confrontados em certa medida pelos escritos de Colin Barker sobre o caráter nacional dos Estados e a necessidade de pensar o capitalismo como uma teoria de muitos Estados. Colin Barker, A note on the theory of capitalist states, 1978, Capital & Class 4 — http://www.marxists.de/theory/barker/capstates.htm
14. Louis Althusser, On the Reproduction of Capitalism: Ideology and Ideological State Apparatuses, 2014, Verso Books, Londres, 1a Ed.
15. Antonio Gramsci, Selections from the Prison Notebooks, 1971, International Publishers, Nova York, 1a Ed. Em particular, a seção ‘State and Civil Society’.
16. Ralph Miliband, The State In Capitalist Society, 1969, Weidenfeld & Nicholson, Londres, 1a Ed. Nicos Poulantzas, State, Power, Socialism, 1978, New Left Books, Londres, 1a Ed. Uma intervenção útil em torno deste debate é a de Bertell Ollman em Dialectical Investigations, 1993, Routledge. O capítulo três deste trabalho aponta para a intersecção de diferentes abordagens marxistas do Estado, cujos extratos estão aqui https://www.nyu.edu/projects/ollman/docs/di_ch03.php
17. Este termo, é claro, denota uma variedade de pensadores de uma forma muito ampla, mas o lugar para começar seria a coleção de quatro volumes Open Marxism, publicada pela Pluto Press -https://www.plutobooks.com/pluto-series/open-marxism/
18. Rafael Khachaturian, The State, Legal Form, Junho 2020 — https://legalform.blog/2020/06/29/the-state-rafael-khachaturian/
19. Aqui não se trata de “comprometimento” em algum sentido moralista, mas no sentido estratégico de tentar exercer força apenas dentro dos elementos existentes no aparelho de Estado, o que tende para uma determinada política. Para uma análise exemplar disso na prática, veja JS Titus, New Labour, Old Racism, Frightful Hobgoblins, Dezembro de 2020 — https://frightfulhobgoblins.medium.com/new-labour-old-racism-a384e4203262
20. A. M. Gittlitz, I Want to Believe: Posadism, UFOs, and Apocalypse Communism, 2020, Pluto Press, Londres, 1a Ed. Pode parecer contra-intuitivo interrogar os posadistas, mas um dos aspectos surpreendentes do livro de Gittlitz é o quanto se pode aprender com o fracasso deste projeto e o que ele significa para a organização revolucionária hoje.
21. Janet Biehl (Ed), The Murray Bookchin Reader, 1999, Black Rose Books, Montreal, 1a Ed. Uma parte significativa dos escritos de Bookchin pode ser encontrada em theanarchistlibrary.org, mas uma de suas obras mais importantes é Listen, Marxist!, 1969 — https://www.marxists.org/archive/bookchin/1969/listen-marxist.htm.
22. Comuna Internacionalista de Rojava, Make Rojava Green Again, 2019, Dog Section Press, Londres, 1a Ed.
23. Andre Gorz, Farewell to the Working Class, 1982, Pluto Press, Londres, 1a Ed.
24. Naomi Klein, This Changes Everything: Capitalism vs. the Climate, 2014, Simon & Schuster, Nova York, 1a Ed.
25. Martin Arboleda, Planetary Mine: Territories of Extraction Under Late Capitalism, 2020, Verso Books, Londres, 1a Ed. Este livro é excepcional em sua amplitude e busca reanalisar o papel do Estado e do imperialismo na extração de recursos contemporâneos. Embora não afirme o leninismo ecológico, me parece o trabalho mais próximo da escala necessária para um projeto leninista ecológico.
26. Salar Mohandesi, Party As Articulator, Viewpoint Magazine, Setembro de 2020 — https://viewpointmag.com/2020/09/04/party-as-articulator/
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