Por que o ecossocialismo precisa de Marx

Leia Marxistas
9 min readJan 20, 2021

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por Kohei Saito, via Monthly Review.

Traduzido por Débora Cunha.

Em seu recente prefácio à segunda edição de Marx e a Natureza de Paul Burkett, John Bellamy Foster refletiu sobre uma mudança significativa nas atitudes da esquerda em relação à ecologia de Marx: “Hoje, a compreensão de Marx do problema ecológico está sendo estudada em universidades em todo o mundo e está inspirando ações ecológicas ao redor do globo.”1 Esse reconhecimento mundial da crítica ecológica do capitalismo por Marx, sem dúvida, deve muito a Marx e Natureza (1999) de Burkett e a A Ecologia de Marx de Foster (2000). No entanto, o novo interesse pelo marxismo ecológico não se originou apenas com esses livros. Em vez disso, como documenta seu novo livro em coautoria Marx e a Terra, nos últimos quinze anos Burkett e Foster refutaram meticulosamente as muitas críticas a Marx dos chamados “ecossocialistas da primeira fase”, como John Clark, Joel Kovel, e Daniel Tanuro. Suas críticas são diversas e cada uma é analisada de perto nos capítulos do livro de Foster e Burkett, o qual discute “a rejeição de Marx do valor intrínseco da natureza” (introdução); “A instrumentalização da natureza como corpo inorgânico do homem” (capítulo um); “A ignorância de Marx e Engels sobre termodinâmica” (capítulos dois, três e quatro); e “A minimização das condições naturais nos esquemas de reprodução” (capítulo cinco).

Deve-se notar que, quaisquer que sejam suas divergências com Marx, os ecossocialistas da primeira fase também eram profundamente críticos do capitalismo. Então por que Foster e Burkett estão discutindo com seus camaradas em potencial? Além disso, algumas das questões abordadas em Marx e a Terra podem parecer confusas à primeira vista — por que se preocupar em debatê-las em tal profundidade? No entanto, um leitor paciente logo reconhecerá a importância do livro e o significado das questões em jogo. Como os autores apontam, os “ecossocialistas da primeira fase”, apesar de sua apreciação declarada do legado maior de Marx, tendem a enfatizar as deficiências teóricas da ecologia de Marx nos termos mais fortes, como “uma grande falha ecológica”, “um erro grave,” “um defeito” e “uma falha”(16). Eles preferem abandonar as teorias de valor, reificação e classe de Marx de uma vez só, descartando-as como desatualizadas e irrelevantes, e não veem sentido em reviver as ideias de Marx como parte de uma crítica radical da destruição ambiental do capitalismo. Ao mesmo tempo, confrontados com a crescente influência hegemônica de uma “abordagem clássica” de Marx e Engels, os ecossocialistas da primeira fase procuram obstinadamente por quaisquer “falhas” na compreensão de Marx e Engels das ciências naturais, por mais triviais que sejam, a fim de minar a ecologia de Marx. Foster e Burkett se propuseram a elaborar uma rigorosa “anti-crítica” contra essas críticas, a fim de finalmente resolver esses debates e defender uma parte vital do legado intelectual de Marx.

Marx e Engels, é claro, dificilmente poderiam prever tudo o que se abateu sobre a humanidade e o meio ambiente desde sua época. No entanto, para muitos críticos de esquerda, esse fato óbvio por si só invalida seus escritos sobre ecologia. Em vez disso, baseando-se na rica tradição socialista e ecológica de Paul Sweezy, Shigeto Tsuru, István Mészáros e Barry Commoner, que já haviam defendido a relevância teórica da crítica ecológica de Marx nas décadas de 1960 e 70, Foster e Burkett demonstraram de forma convincente que a ecologia de Marx pode nos permitir derivar uma “abordagem metodológica aplicável aos problemas ambientais bastante diferentes (mas não sem relação) de hoje”, porque sua crítica da economia política, mais de um século depois, ainda oferece uma visão única sobre a lógica e estrutura fundamentais do capitalismo(24).

Ao defender a “compatibilidade” da visão de Marx com a economia ecológica contemporânea, Foster e Burkett empreendem investigações históricas dos discursos e debates científicos do século XIX (135). Por exemplo, eles fornecem traduções das versões em italiano e alemão do artigo seminal de Sergei Podolinsky sobre “Socialismo e a Unidade das Forças Físicas”, do início da década de 1880, no apêndice, deixando claro que Marx e Engels não rejeitaram Podolinsky porque eles desconheciam a contribuição termodinâmica deste último para a economia ecológica, mas sim porque estavam plenamente cientes dos pressupostos problemáticos de Podolinsky. O materialismo grosseiro de Podolinsky, baseado no “reducionismo de energia”, é de pouca utilidade para a compreensão da categoria social de “valor”. Em outras palavras, uma perspectiva termodinâmica por si só não é capaz de revelar a especificidade histórica das relações sociais capitalistas. Mesmo dentro da termodinâmica, os cálculos de Podolinsky, de acordo com Burkett e Foster, são profundamente falhos, ignorando as entradas de energia associadas a fertilizantes e carvão e efetivamente omitindo o papel da humanidade como um “esbanjador” de energia solar acumulada no processo de produção. Marx e Engels, ao contrário, deram muito mais atenção a esse desperdício, abrindo a possibilidade de uma crítica ecológica do valor (127).

Além disso, Foster e Burkett mostram que Marx e Engels estudaram ávida e cuidadosamente os mais novos desenvolvimentos nas ciências naturais, e as críticas dos ecossocialistas da primeira fase à ignorância de Marx sobre termodinâmica, entre outras áreas, são baseadas na leitura arbitrária ou superficial dos textos. Embora Engels seja mais conhecido por seus escritos sobre ciências naturais, o livro oferece um lembrete valioso de que Marx foi um estudante igualmente zeloso de muitos dos mesmos assuntos. A divisão intelectual do trabalho entre Marx e Engels sugerida pelo marxismo ocidental, herdada pelos ecossocialistas do primeiro estágio, portanto, não se mantém. Os marxistas ocidentais, mais influentemente aqueles associados à Escola de Frankfurt, limitaram a aplicação da dialética à sociedade, excluindo o que consideravam o projeto equivocado de Engels de uma “dialética da natureza”, em um esforço para salvar Marx da visão de mundo rigidamente positivista e mecanicista do marxismo soviético. O preço que pagaram por esse embargo intelectual foi significativo. Ao excluir as ciências naturais do projeto de Marx, os marxistas ocidentais foram incapacitados de analisar as crises ecológicas modernas como manifestações das contradições básicas do capitalismo. Assim, Alain Badiou, um representante contemporâneo do legado marxista ocidental, ironicamente declarou que a ecologia é “uma forma contemporânea do ópio do povo”.2 Contra essa tendência, Marx e a Terra de Foster e Burkett supera o binarismo de sociedade e natureza dentro do marxismo, demonstrando com sucesso que Marx foi capaz de elaborar suas concepções de “força de trabalho” e “valor” sem contradizer ou distorcer as descobertas científicas naturais de seu tempo.

O conceito-chave nesta transcendência do sistema binário sociedade-natureza é o “metabolismo” (Stoffwechsel). Segundo Marx, o trabalho é uma mediação da interação metabólica entre o ser humano e a natureza. Os humanos trabalham ativamente com a natureza de maneira consciente e teleológica, alterando e perturbando a natureza dramaticamente. Ao mesmo tempo, os humanos, como parte da natureza, não estão em posição de manipular arbitrariamente o mundo externo e sensorial. Em vez disso, eles dependem profundamente de seu ambiente. Essa dependência da natureza é aparente na disponibilidade limitada de recursos naturais e energias, e na miríade de maneiras pelas quais o desenvolvimento das sociedades humanas foi condicionado por fatores geológicos, climáticos e biológicos — o que os autores chamam de “realidade da coevolução” por meio do processo incessante de interação metabólica entre o homem e a natureza(116). Nesse sentido, o conceito de “metabolismo” de Marx começa com o reconhecimento dessa “unidade” trans-histórica dos humanos e da natureza como condição material fundamental.

Por si só, o conceito de metabolismo dificilmente é revelador. Mas Marx vai além, com o objetivo de compreender a especificidade histórica da relação metabólica entre a humanidade e a natureza sob o capitalismo. É por isso que Foster e Burkett enfatizam que a produção capitalista é caracterizada pela “separação” dos humanos de sua condição objetiva de produção, ou seja, pela alienação da natureza (85). Em vez de cair em uma visão neomalthusiana de superpopulação, Marx se perguntou como a organização historicamente única do metabolismo entre a humanidade e a natureza do capitalismo causa “rupturas” nas condições materiais da vida. Claro, a produção capitalista não é possível sem o apoio da natureza, e mesmo seu crescimento voraz é restringido pelos limites materiais dos recursos disponíveis. No entanto, o esforço infinito do capital pela autovalorização significa que ele não pode considerar totalmente a sustentabilidade da energia e recursos historicamente acumulados, como a fertilidade do solo e os combustíveis fósseis. Consequentemente, a “ruptura” observada acima assume a forma de crises ambientais que acompanham a expansão da lógica do capital em todo o mundo.

Dessa forma, Marx e a Terra já prepara uma resposta convincente a Jason W. Moore, que recentemente argumentou que “a ruptura metabólica” pressupõe uma crua “divisão cartesiana” entre a sociedade e a natureza.3 Tal dualismo é, na verdade, estranho ao conceito do metabolismo, entretanto, enquanto abordagem oposta, uma ênfase unilateral na unidade da sociedade e da natureza, elimina o compreensão vital de Marx de que a produção capitalista é caracterizada pela alienação do trabalho da natureza. A forma social de trabalho é de importância central para a investigação crítica de Marx, e tratar o trabalho, como Moore faz, como meramente um dos por ele chamados “Quatro barateamentos (Cheaps)” que permitem a expansão capitalista, é perder esse ponto fundamental da teoria do metabolismo de Marx.

Marx e a Terra é um exame completo e defesa da crítica ecológica de Marx ao capitalismo, e suas ideias foram ainda mais reforçadas pela publicação da nova edição das obras coletadas de Marx e Engels, o Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA). Uma série de cadernos de Marx, não publicados até a nova edição, registram seu exame cuidadoso dos mais novos avanços nas ciências naturais. Dois exemplos específicos mostram a relevância do MEGA para Marx e a Terra.

Em primeiro lugar, Foster e Burkett respondem à crítica de Joel Kovel de que Marx não reconheceu o valor intrínseco da natureza, mas sim tratou a natureza meramente como um instrumento da humanidade. Não apenas, os autores argumentam, o recuo de Kovel à intuição estética do valor da natureza é, como sugerido por Jakob Böhme, um recuo para o idealismo (47), mas também suas críticas a Marx nesse sentidosão decisivamente refutadas por comentários registrados nos cadernos de Marx . Durante seu exílio de décadas em Londres, Marx testemunhou um rápido desenvolvimento na produtividade da pecuária inglesa. Ele leu livros em francês e alemão que defendiam a superioridade da agricultura inglesa. No entanto, seus comentários sobre essas leituras são muito mais críticos da atividade humana e simpáticos aos animais. Respondendo aos relatos entusiasmados de Léonce de Lavergne sobre o “sistema de seleção” desenvolvido pelo criador inglês Robert Bakewell, Marx comentou: “Caracterizado pela precocidade, doentio em totalidade, faltando em ossos, muito desenvolvimento de gordura e carne etc. Estes são produtos artificiais. Nojento!”.4 Marx também leu a obra de Wilhelm Hamm, o tradutor de Lavergne para o alemão, que tinha a mesma admiração pela agricultura inglesa. Os comentários de Marx são novamente simpáticos ao bem-estar dos animais. Marx condena “alimentar-se no estábulo” como um “sistema de cela de prisão” e se pergunta:

Nessas prisões, os animais nascem e permanecem até serem mortos. A questão é se esse sistema conectado ou não ao sistema de criação que cria animais de forma anormal, abortando ossos para transformá-los em mera carne e um volume de gordura — enquanto antes (antes de 1848) os animais permaneciam ativos ficando a céu aberto tanto quanto possível — no final das contas resultará em séria deterioração da força vital?

Essas observações surpreenderão aqueles que desejam denunciar Marx como um apologista ingênuo e antropocêntrico do desenvolvimento tecnológico. Em vez disso, seus cadernos documentam sua reação real contra a forma capitalista de desenvolvimento do “roubo”, uma crítica que dificilmente excluía os não-humanos da consideração.

Foster e Burkett também se referem ao Manual de Geologia do Aluno de Joseph Beete Jukes, de 1878. Olhando para os extensos excertos do livro de Jukes feitos por Marx, ficamos surpresos ao observar que seu interesse por questões ecológicas continuou a se expandir ao longo dos últimos anos de sua vida. Investigando o impacto das mudanças climáticas nas espécies, ele prestou atenção às grandes transformações da natureza causadas pela humanidade: “A extinção das espécies ainda está acontecendo (o próprio homem [é] o exterminador mais ativo).”6 Esses são apenas dois exemplos, e Marx preencheu cerca de duzentos cadernos durante sua vida, muitos dos quais, sem dúvida, contêm ainda mais suporte textual para a “ecologia de Marx”.

Em qualquer caso, Foster e Burkett são os melhores representantes dos “ecossocialistas da segunda fase” que reviveram a tradição marxista de crítica ecológica do capitalismo. Não é de admirar que suas análises cuidadosas em Marx e a Terra e em trabalhos anteriores tenham inspirado muitos estudiosos e ativistas, e que um movimento de “ecossocialistas da terceira fase”, como Naomi Klein, Stefano Longo, Brett Clark, Del Weston, e Richard York, esteja emergindo (11). Mais do que apenas uma “anti-crítica”, Marx e a Terra mostram positivamente que a abordagem clássica de Marx fornece uma base metodológica para a compreensão da atual crise ecológica global do capitalismo.

Notas

1. John Bellamy Foster, “Prefácio,” em Marx e a Natureza: Uma Perspectiva Vermelha e Verde de Paul Burkett, (Chicago: Haymarket, 2014), vii.

2. Alain Badiou, Teoria Viva (New York: Continuum, 2008), 139.

3. Jason W. Moore, Capitalismo na Teia da Vida (London: Verso, 2014), 76.

4. Arquivo Marx-Engels (MEA), Instituto Internacional de História Social, Sign. B. 106, 209.

5. MEA, Sign. B. 106, 336.

6. MEGA IV/26, 233, ênfase no original.

Essa tradução foi possível graças às contribuições feitas pelo Apoia.se. Se você puder e quiser colaborar, o link é apoia.se/leiamarxistas

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