Os Cadernos Ecológicos de Marx — parte 1

Por Kohei Saito via Monthly Review.

Leia Marxistas
19 min readMar 18, 2021

Traduzido por André Gavasso e Débora Cunha. Revisado por Rebecca Borges.

Karl Marx há muito tempo é criticado por seu chamado “prometeísmo” ecológico — um compromisso extremo com o industrialismo, independentemente dos limites naturais. Essa visão, apoiada até por uma série de marxistas, como Ted Benton e Michael Löwy, tornou-se cada vez mais difícil de aceitar após uma série de análises cuidadosas e estimulantes das dimensões ecológicas do pensamento de Marx, elaboradas na Monthly Review e em outros lugares. O debate do prometeísmo não é uma questão meramente filológica, mas altamente prática, pois o capitalismo enfrenta crises ambientais em escala global sem soluções concretas. Qualquer uma dessas soluções provavelmente virá de um dos vários movimentos ecológicos emergentes em todo o mundo, alguns dos quais questionam explicitamente o modo de produção capitalista. Agora, mais do que nunca, portanto, a redescoberta de uma ecologia marxiana é de grande importância para o desenvolvimento de novas formas de estratégia de esquerda e de luta contra o capitalismo global.

No entanto, raramente existe um acordo inequívoco entre as pessoas de esquerda sobre até que ponto a crítica de Marx pode fornecer uma base teórica para essas novas lutas ecológicas. “Ecossocialistas de primeiro estágio”, na categorização de John Bellamy Foster, como André Gorz, James O’Connor e Alain Lipietz, reconhecem as contribuições de Marx sobre as questões ecológicas até certo ponto, mas, ao mesmo tempo, argumentam que suas análises do século XIX são muito incompletas e datadas para serem de real relevância hoje. Em contraste, “ecossocialistas de segundo estágio”, como Foster e Paul Burkett, enfatizam o significado metodológico contemporâneo da crítica ecológica de Marx ao capitalismo, com base em suas teorias de valor e reificação.1

Este artigo fará uma abordagem diferente e investigará os cadernos de ciências naturais de Marx, especialmente os de 1868, que serão publicados pela primeira vez no volume quatro, seção dezoito da nova Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA).2 Como Burkett e Foster acertadamente enfatizam, os cadernos de notas de Marx nos permitem ver claramente seus interesses e preocupações antes e depois da publicação do primeiro volume d’O Capital em 1867, e as direções que ele poderia ter tomado através de sua pesquisa intensiva em disciplinas como biologia, química, geologia e mineralogia, muitas das quais ele não foi capaz de integrar totalmente a O Capital 3. Enquanto o grande projeto d’O Capital permaneceria inacabado, nos últimos quinze anos de sua vida Marx preencheu um enorme número de cadernos com fragmentos e trechos. Na verdade, um terço de seus cadernos datam desse período, e quase a metade deles trata das ciências naturais. A intensidade e o escopo dos estudos científicos de Marx são surpreendentes. Assim, é simplesmente inválido concluir, como alguns críticos concluíram, que os poderosos argumentos ecológicos de Marx em O Capital e outros escritos eram meros parênteses, ignorando a massa de evidências contrárias a serem encontradas em suas últimas pesquisas de ciências naturais.

Olhando para os cadernos depois de 1868, pode-se reconhecer imediatamente a rápida expansão dos interesses ecológicos de Marx. Argumentarei que a crítica de Marx à economia política, se concluída, teria colocado uma ênfase muito mais forte na perturbação da “interação metabólica” (Stoffwechsel) entre a humanidade e a natureza como a contradição fundamental dentro do capitalismo. Além disso, o aprofundamento dos interesses ecológicos de Marx serve para complicar a crítica de Liebig ao “sistema de roubo” moderno, que discuto a seguir. A centralidade da ecologia nos últimos escritos de Marx permaneceu difícil de discernir por muito tempo porque ele nunca foi capaz de completar seu magnum opus. Os cadernos recém-publicados prometem nos ajudar a compreender esses aspectos ocultos, mas vitais, do projeto de vida de Marx.

Marx e Liebig em Diferentes Edições d’O Capital

Já é um fato bem conhecido que a crítica de Marx à irracionalidade da agricultura moderna em O Capital é profundamente informada pelo livro Agricultural Chemistry (Química Agrícola), de Justus von Liebig, e por Notes on North America (Notas sobre a América do Norte), de James F.W. Johnston, trabalhos que argumentam que a negligência das leis naturais dos solos inevitavelmente leva à sua exaustão.4 Após o estudo intensivo desses livros em 1865–66, Marx integrou as ideias centrais de Liebig ao volume um d’O Capital. Em uma seção chamada “Indústria e Agricultura Modernas”, Marx escreveu que o modo de produção capitalista

reúne a população em grandes centros, e faz com que a população urbana atinja uma preponderância cada vez maior…. [Ele] perturba a interação metabólica entre o homem e a terra, ou seja, impede o retorno ao solo de seus elementos constituintes consumidos pelo homem na forma de alimentos e roupas; portanto, impede o funcionamento da condição natural eterna para a fertilidade duradoura do solo. Assim, destrói, ao mesmo tempo, a saúde física do trabalhador urbano e a vida intelectual do trabalhador rural.5

Esta passagem justamente famosa tornou-se a pedra angular das recentes análises da “fenda metabólica”.6 Em uma nota de rodapé a esta seção, Marx expressa abertamente sua dívida com a sétima edição de Agricultural Chemistry, publicada em 1862: “Ter desenvolvido do ponto de vista das ciências naturais o lado negativo, ou seja, o lado destrutivo da agricultura moderna, é um dos méritos imortais de Liebig.” Essas observações são a razão pela qual a abordagem da “fenda metabólica” se concentrou na crítica de Liebig à agricultura moderna como uma fonte intelectual para a crítica ecológica de Marx ao capitalismo.

No entanto, é pouco sabido que na primeira edição alemã d’O Capital (1867), que infelizmente não está disponível em inglês, Marx afirmou que os “breves comentários de Liebig sobre a história da agricultura, embora não estejam isentos de erros grosseiros, contêm mais lampejos de percepção do que todas as obras dos economistas políticos modernos reunidas [mehr Lichtblicke als die Schriften sämmtlicher modernen politischen Oekonomen zusammengenommen].”7 Um leitor cuidadoso pode notar imediatamente uma diferença entre esta versão e as edições posteriores, embora isso tenha sido apontada apenas recentemente, por um editor alemão da MEGA, Carl-Erich Vollgraf.8 Marx modificou essa frase na segunda edição d’O Capital publicada em 1872–73. Consequentemente, normalmente só lemos: “Seus breves comentários…embora não estejam isentos de erros grosseiros, contêm flashes de percepção.”9 Marx excluiu a declaração de que Liebig era mais perspicaz “do que todas as obras de economistas políticos modernos juntas”. Por que Marx suavizou seu endosso das contribuições de Liebig em relação à economia política clássica?

Pode-se argumentar que esta eliminação é apenas uma mudança trivial, destinada a esclarecer as contribuições originais de Liebig no campo da química agrícola e separá-las da economia política, onde o grande químico cometeu alguns “erros grosseiros”. Além disso, Marx, como mostram estas páginas, estava muito entusiasmado com a compreensão de um determinado economista político sobre o problema do solo, chamado James Anderson, que, ao contrário de outros economistas políticos clássicos, examinou as questões da destruição do solo. Foi o próprio reconhecimento de Liebig do “lado destrutivo da agricultura moderna”, que Marx caracterizou como “um dos méritos imortais de Liebig”. Portanto, Marx pode ter pensado que sua expressão na primeira edição de O Capital foi um tanto exagerada.

No entanto, também deve ser observado que o livro de Liebig foi avidamente discutido por uma série de economistas políticos na época, precisamente por causa de suas supostas contribuições para a economia política, especialmente a teoria do aluguel da terra e a teoria da população.10 Por exemplo, o economista alemão Wilhelm Roscher reconheceu a relevância da teoria mineral de Liebig para a economia política antes mesmo de Marx, e acrescentou algumas passagens e notas dedicadas a Liebig em sua quarta edição de National Economy of Agriculture and the Related Branches of Natural Production (Economia Nacional da Agricultura e os Ramos Relacionados da Produção Natural) [Nationalökonomie des Ackerbaues und der verwandten Urproductionen] (1865), a fim de integrar as novas descobertas agrícolas de Liebig ao seu próprio sistema de economia política. Notavelmente, Roscher o elogia em termos semelhantes: “Mesmo que muitas das afirmações históricas de Liebig sejam altamente contestáveis…mesmo que ele não se atente a alguns fatos importantes sobre a economia nacional, o nome deste grande cientista natural sempre manterá um lugar de honra comparável ao nome de Alexander Humboldt na história da economia nacional.”11 Na verdade, é muito provável que o livro de Roscher tenha levado Marx a reler Agricultural Chemistry em 1865–66. As observações semelhantes de ambos os autores refletem uma opinião generalizada sobre esta obra de Liebig, na época.

Além disso, é razoável supor que Marx na primeira edição d’O Capital estava intencionalmente comparando Liebig com aqueles economistas políticos que postularam um desenvolvimento trans-histórico e linear da agricultura, seja de solos mais produtivos para menos produtivos (Malthus, Ricardo e J.S. Mill), ou de menos produtivos para mais produtivos (Carey e mais tarde Dühring). A crítica de Liebig ao “sistema de roubo” do cultivo, em vez disso, denuncia precisamente a forma moderna de agricultura e sua produtividade decrescente como resultado do uso irracional e destrutivo do solo. Em outras palavras, a historicização de Liebig da agricultura moderna fornece a Marx uma base útil nas ciências naturais para rejeitar abordagens abstratas e lineares do desenvolvimento agrícola.

No entanto, como visto anteriormente, Marx relativiza um pouco a contribuição de Liebig à economia política entre 1867 e 1872–73. Será que Marx tinha dúvidas sobre os estudos químicos de Liebig, bem como sobre seus erros econômicos? Neste contexto, o estudo atento das cartas e cadernos de Marx nos ajuda a compreender os objetivos e métodos mais amplos de sua pesquisa após 1868.

Debates sobre Agricultural Chemistry de Liebig

Olhando para as cartas e cadernos deste período, parece mais provável que a mudança em relação à contribuição de Liebig na segunda edição representou mais do que uma mera correção. Marx estava bem ciente dos debates acalorados em torno de Agricultural Chemistry de Liebig, então, após a publicação do primeiro volume d’O Capital, ele julgou necessário acompanhar a validade da teoria de Liebig. Em uma carta a Engels datada de 3 de janeiro de 1868, Marx pediu-lhe que procurasse aconselhamento com um amigo de longa data e químico, Carl Schorlemmer:

Gostaria de saber de Schorlemmer qual é o melhor e mais recente livro (alemão) sobre química agrícola. Além disso, qual é o estado atual da discussão entre o pessoal do fertilizante mineral e o pessoal do fertilizante com nitrogênio? (Desde a última vez que verifiquei o assunto, todo tipo de coisa nova apareceu na Alemanha.) Ele sabe alguma coisa sobre os alemães mais recentes que escreveram contra a teoria da exaustão do solo de Liebig? Ele conhece a teoria do aluvião do agrônomo de Munique Fraas (professor da Universidade de Munique)? Para o capítulo sobre aluguel de terra, terei de estar ciente do último estado da questão, pelo menos até certo ponto.12

As observações de Marx nesta carta indicam claramente seu objetivo, no início de 1868, de estudar livros sobre agricultura. Ele não está apenas procurando a literatura recente sobre agricultura em geral, mas presta atenção particular aos debates e críticas de Agricultural Chemistry de Liebig. É importante notar que no manuscrito do volume três d’O Capital, Marx atipicamente aponta para a importância da análise de Liebig, embora essencialmente indicando que essa precisa ser complementada no futuro. Ou seja, isso era parte do argumento de que ele estava continuando a pesquisar — e em áreas tão básicas quanto “o declínio da produtividade do solo” relacionadas às discussões sobre a queda da taxa de lucro.13

Liebig, muitas vezes chamado de “pai da química orgânica”, demonstrou de forma convincente que o crescimento saudável das plantas requer substâncias orgânicas e inorgânicas, como nitrogênio, ácido fosfórico e potássio. Ele alegou, contra as teorias dominantes centradas no húmus (um componente orgânico do solo feito de matéria vegetal e animal em decomposição) ou nitrogênio, que todas as substâncias necessárias devem ser fornecidas em mais do que uma “quantidade mínima”, uma proposição conhecida como a “lei do mínimo” de Liebig.14 Embora a visão de Liebig sobre o papel das substâncias inorgânicas permaneça válida hoje, duas teses derivadas dela, as teorias da fertilização mineral e da exaustão do solo, geraram controvérsia imediata.

Segundo Liebig, a quantidade de substâncias inorgânicas nos solos permanece limitada sem reposição constante. Portanto, é necessário devolver regularmente ao solo aquelas substâncias inorgânicas que as plantas absorveram, para que possamos cultivar de forma sustentável. (Estas podem ser devolvidas em formas inorgânicas ou orgânicas, que são convertidas [mineralizadas] em formas inorgânicas.) Liebig chama essa necessidade de “lei de reposição” e afirma que a substituição completa das substâncias inorgânicas é o princípio fundamental da agricultura sustentável. Visto que a natureza sozinha não poderia fornecer material inorgânico suficiente quando uma quantidade tão grande de nutrientes fosse removida anualmente, Liebig defendeu o uso de fertilizante mineral químico. Ele sustentou que não apenas a teoria do húmus de Principles of Practical Agriculture (Princípios da Agricultura Prática) de Albrecht Daniel Thaer, mas também a teoria do nitrogênio de John Bennett Lawes e Joseph Henry Gilbert apresentavam falhas graves, porque não deram atenção à quantidade limitada de substâncias inorgânicas disponíveis no solo.

Com base em sua teoria, Liebig alertou que as violações da lei de reposição e o consequente esgotamento do solo ameaçavam toda a civilização europeia. De acordo com Liebig, a industrialização moderna criou uma nova divisão de trabalho entre a cidade e o campo, de modo que os alimentos consumidos pela classe trabalhadora nas grandes cidades não mais voltam e restauram os solos originais, mas fluem para o rio através de vasos sanitários sem uso posterior. Além disso, através da mercantilização de produtos agrícolas e fertilizantes (osso e palha), o objetivo da agricultura diverge da sustentabilidade e passa a ser a mera maximização dos lucros, espremendo os nutrientes do solo para as lavouras no menor período possível. Perturbado por esses fatos, Liebig denunciou a agricultura moderna como um “sistema de roubo” e alertou que a interrupção da interação metabólica natural acabaria por causar a decadência da civilização. Mudando de sua crença bastante otimista, no início da década de 1850, na panaceia da fertilização química, a edição de 1862 de Agricultural Chemistry de Liebig, especialmente sua nova introdução, enfatizou os aspectos destrutivos da agricultura moderna com muito mais fervor.

À medida que Liebig fortalecia sua crítica a esse sistema de roubo em 1862 e corrigia seu otimismo anterior, Marx, compreensivelmente, sentiu a necessidade de revisar o debate sobre a fertilidade do solo por uma nova perspectiva. Ao mesmo tempo, a crítica de Liebig ao sistema de roubo e exaustão do solo inspirou uma série de novos argumentos entre acadêmicos e agrônomos. A carta de Marx a Engels deixa claro que, mesmo após a publicação do volume um d’O Capital, ele tentou examinar a validade da teoria de Liebig de uma perspectiva mais crítica.

Notavelmente, vários economistas políticos, além de Marx e Roscher, também participaram desse debate. Conforme descrito por Foster, Henry Charles Carey já havia se referido ao desperdício de produção agrícola nos Estados Unidos e alegado que o irresponsável “roubo da terra” constituía um sério “crime” contra as gerações futuras.15 Liebig também estava interessado em Carey e citou seu trabalho extensivamente, mas Marx pode não ter tido clareza sobre a relação entre Liebig e Carey quando leu Agricultural Chemistry em 1865–66. Marx havia se correspondido com Carey, que lhe enviou seu livro sobre a escravidão, o qual continha alguns de seus argumentos sobre o esgotamento do solo, e Marx estudou as obras econômicas de Carey.16 No entanto, o papel de Carey no debate geral sobre o solo provavelmente se tornou mais aparente quando Marx encontrou o trabalho de Eugen Dühring. Marx começou a estudar os livros de Dühring em janeiro de 1868, depois que Louis Kugelmann lhe enviou a resenha de Dühring d’O Capital — a primeira resenha do livro em qualquer lugar — publicada em dezembro de 1867.

Dühring, um professor da Universidade de Berlim, era um defensor entusiasmado do sistema econômico de Carey. Ele também integrou a teoria de Liebig em sua análise econômica como validação adicional da proposta de Carey de estabelecer comunidades autárquicas em que produtores e consumidores vivessem em harmonia, sem desperdiçar nutrientes para as plantas e, portanto, sem esgotar os solos. Dühring sustentou que a teoria de Liebig de exaustão do solo “constrói um pilar no sistema [de Carey]” e afirmou que

a exaustão do solo, que já se tornou bastante ameaçadora na América do Norte, por exemplo, será … interrompida no longo prazo apenas por meio de uma política comercial construída sobre a proteção e a educação do trabalho doméstico. Porque o desenvolvimento harmonioso das várias instalações de uma nação … promove a circulação natural dos materiais [Kreislauf der Stoffe] e permite que os nutrientes das plantas sejam devolvidos ao solo de onde foram retirados.17

No manuscrito do volume três d’O Capital, Marx imaginou uma sociedade futura além do antagonismo entre a cidade e o campo, na qual “os produtores associados regulam racionalmente seu intercâmbio metabólico com a natureza”. Ele deve ter ficado surpreso ao saber que Dühring similarmente exigia, como a “única contramedida” contra a produção ineficaz, a “regulamentação consciente da distribuição material”, superando a divisão entre cidade e campo.18 Em outras palavras, a afirmação de Marx, juntamente com a de Dühring, reflete uma tendência popular da “escola de Liebig” da época. Nos anos subsequentes, a visão de Marx de Dühring tornou-se mais crítica, à medida que Dühring começou a promover seu próprio sistema como o único verdadeiro fundamento da social-democracia. Isso provavelmente reforçou a suspeita de Marx sobre a interpretação de Dühring do esgotamento do solo e seus defensores, mesmo que ele continuasse a reconhecer a utilidade da teoria de Liebig. De qualquer forma, no início de 1868, a constelação discursiva já incitava Marx a estudar livros “contra a teoria da exaustão do solo de Liebig”.

Malthusianismo de Liebig?

Marx estava particularmente preocupado com o fato de que as advertências de Liebig sobre o esgotamento do solo traziam uma pitada de malthusianismo. Eles reabilitaram, para usar a expressão de Dühring, “o fantasma de Malthus”, já que Liebig parecia fornecer uma nova versão “científica” dos velhos temas malthusianos de escassez de alimentos e superpopulação.19 Como observado acima, o tom geral do argumento de Liebig mudou de otimismo na década de 1840 até meados da década de 1850 para pessimismo no final dos anos 1850 e 1860. Severamente crítico da agricultura industrial britânica, ele previu um futuro sombrio para a sociedade europeia, cheio de guerra e fome, se a “lei da reposição” continuasse a ser ignorada:

Em poucos anos, as reservas de guano se esgotarão, e então nenhuma disputa científica, nem, por assim dizer, teórica será necessária para provar a lei da natureza que exige do homem que ele se preocupe com a preservação de suas condições de vida. … Para sua autopreservação, as nações serão compelidas a massacrar e aniquilar umas às outras em guerras sem fim, a fim de restaurar o equilíbrio, e, Deus nos livre, se dois anos de fome como 1816 e 1817 se sucederem novamente, aqueles que sobreviverem irão ver centenas de milhares morrerem nas ruas.20

O novo pessimismo de Liebig aparece claramente nesta passagem. Embora sua visão da agricultura moderna como um “sistema de roubo” mostre sua superioridade sobre a amplamente difundida e a-histórica “lei dos rendimentos decrescentes” de Malthus e Ricardo, sua conclusão deixa sua relação com as idéias malthusianas ambíguas. Na verdade, Marx estava particularmente preocupado com as referências de Liebig à teoria ricardiana. Liebig conheceu pessoalmente John Stuart Mill e pode ter sido diretamente influenciado por este. Ironicamente, no entanto, como Marx aponta, a teoria da renda ricardiana se originou não com Ricardo e nem com Malthus — e certamente não com John Stuart Mill, como Liebig erroneamente supõe — mas com James Anderson, que lhe deu uma base histórica na degradação do solo. O que preocupava Marx, então, era a frequente ligação em sua época de Liebig a Malthus e Ricardo — representando uma lógica oposta à própria análise de Marx e que, em contraste com Malthus e Ricardo, enfatizava a natureza histórica do problema do solo.21

A questão do malthusianismo de Liebig pode parecer um detalhe obscuro no debate mais amplo sobre o esgotamento do solo, mas é uma das principais razões pelas quais seu Agricultural Chemistry se tornou tão popular em 1862.22 Para Dühring, esse malthusianismo não era tão problemático porque ele acreditava que o sistema econômico de Carey já havia dissipado o “fantasma de Malthus”, mostrando que o desenvolvimento da sociedade tornou possível cultivar solos melhores.23 Claro, Marx dificilmente poderia aceitar essa pressuposição ingênua, como escreveu a Engels em novembro de 1869: “Carey ignora até mesmo os fatos mais familiares.”24

Assim, em 1868, Marx começou a ler a obra de autores que assumiram uma postura mais crítica em relação a Agricultural Chemistry de Liebig. Ele já conhecia argumentos como o de Roscher, que defendia que o sistema de roubo deveria ser criticado do ponto de vista das “ciências naturais”, mas poderia ser justificado do ponto de vista “econômico” na medida em que era mais lucrativo.25 Segundo Roscher, bastava parar o roubo pouco antes de ficar muito caro recuperar a fertilidade original do solo — mas os preços de mercado cuidariam disso. Adotando os argumentos de Roscher, Friedrich Albert Lange, um filósofo alemão, argumentou contra a recepção de Liebig e Carey por Dühring em suas J. St. Mill’s Views of the Social Question [J. St. Mills Ansichten über die sociale Frage] (Visões da Questão Social de J. St. Mill) publicado em 1866. Marx leu o livro de Lange no início de 1868, e não é por acaso que seu caderno se concentra em seu quarto capítulo, onde Lange discute os problemas da teoria da renda e exaustão do solo. Especificamente, Marx destacou a observação de Lange de que Carey e Dühring denunciaram o “comércio” com a Inglaterra como a causa de todos os males e consideraram uma “tarifa protetora” como a “panacéia” definitiva, sem o reconhecimento de Lange de que a “indústria” possui uma “tendência centralizadora”, que cria não apenas a divisão entre cidade e campo, mas também a desigualdade econômica.26 Semelhante a Roscher, Lange argumentou que “apesar da correção científica natural da teoria de Liebig”, o cultivo de roubo pode ser justificado de uma perspectiva “econômica nacional”.

Ideias relacionadas também podem ser encontradas no trabalho do economista alemão Julius Au. Marx possuía uma cópia de Supplementary Fertilizers and their Meaning for National and Private Economy [Hilfsdüngermittel in ihrer volks- und privatwirtschaftlichen Bedeutung] (Fertilizantes Suplementares e seu Significado para a Economia Nacional e Privada) (1869), que ele marcou com notas de rodapé e comentários.28 Embora reconhecesse o valor científico da teoria mineral de Liebig, Au duvidava que a teoria da exaustão do solo pudesse ser considerada uma lei natural “absoluta”. Em vez disso, Au argumentou que era uma teoria “relativa” com pouco significado para as economias da Rússia, Polônia ou Ásia Menor, porque nessas áreas a agricultura poderia ser sustentada, presumivelmente por meio de desenvolvimento extensivo, sem seguir a “lei de reposição”. 29 No entanto, Au aparentemente esqueceu que a principal preocupação de Liebig eram os países da Europa Ocidental. Além disso, Au acabou aceitando acriticamente os mecanismos de regulação de preços do mercado, que ele, como Roscher, esperava que impedissem a exploração excessiva da capacidade do solo porque ela simplesmente deixaria de ser lucrativa. O que resta da teoria de Liebig para Lange e Au é o simples fato de que o solo não poderia ser melhorado infinitamente. Afinal, eles eram defensores neomalthusianos da teoria da superpopulação e da lei dos rendimentos decrescentes.

Reagindo a tudo isso, Marx comenta “Idiota!” [Asinus!] e escreve muitos pontos de interrogação incrédulos em sua cópia do livro de Au.30 Sua avaliação dos livros de Lange é igualmente hostil, pois ele comenta ironicamente a explicação malthusiana da história de Lange em sua carta a Kugelmann datada de 27 de julho de 1870.31 Além disso, é seguro presumir que Marx não foi atraído pela ideia de realizar uma agricultura sustentável por meio de flutuações nos preços de mercado. Uma vez que Marx também não foi capaz de apoiar Carey e Dühring, ele começou a estudar o problema da exaustão do solo de forma mais intensiva, a fim de articular uma crítica sofisticada ao sistema moderno de roubo.

Resumindo: Marx pensou inicialmente que a descrição de Liebig dos efeitos destrutivos da agricultura moderna poderia ser usada como um poderoso argumento contra a abstrata lei de rendimentos decrescentes de Ricardo e Malthus, mas começou a questionar a teoria de Liebig após 1868, conforme os debates sobre o esgotamento do solo cada vez mais assumiam um tom malthusiano. Marx, portanto, recuou de sua afirmação um tanto acrítica e exagerada de que as análises de Liebig “contêm mais lampejos de percepção do que todas as obras de economistas políticos modernos juntas”, em preparação para a pesquisa mais extensa sobre o problema que ele claramente pretendia para os volumes dois e três d’O Capital.

Notas

  1. Ver John Bellamy Foster, prefácio a nova edição de Paul Burkett, Marx and Nature (Chicago: Haymarket, 2014).
  2. O financiamento e o apoio ao projeto MEGA foram estendidos pelos próximos 15 anos. Este artigo é baseado em minha pesquisa como bolsista visitante na Academia de Ciências de Berlin-Brandenburg em 2015. Sou especialmente grato a Gerald Hubmann, que apoiou meu projeto desde o início.
  3. Paul Burkett e John Bellamy Foster, “The Podolinsky Myth,” Historical Materialism 16, no. 1 (2008): 115–61.
  4. Foster, Marx’s Ecology (New York: Monthly Review Press, 2000), capítulo 4; Kohei Saito, “The Emergence of Marx’s Critique of Modern Agriculture,” Monthly Review 66, no. 5 (outubro 2014): 25–46.
  5. Karl Marx e Frederick Engels, Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA) II, vol. 6 (Berlin: De Gruyter, 1975), 409.
  6. John Bellamy Foster, Brett Clark e Richard York, The Ecological Rift (New York: Monthly Review Press, 2010), 7.
  7. MEGA II, vol. 5, 410.
  8. Carl-Erich Vollgraf, Introduction to MEGA II, vol. 4.3, 461. É importante, no entanto, notar que Marx havia dito a mesma coisa em uma carta a Engels em 13 de fevereiro de 1866. Ver Karl Marx e Frederick Engels, Collected Works (New York: International Publishers, 1975), vol. 42, 227. Lá ele escreveu: “Tive de explorar a nova química agrícola na Alemanha, em particular Liebig e Schönbein, que é mais importante para este assunto do que todos os economistas juntos”.
  9. Karl Marx, Capital, vol. 1 (London: Penguin, 1976), 638; ê.
  10. A introdução de Liebig inclui uma seção chamada “Economia Nacional e Agricultura”; Marx começa seus trechos com esta seção e, em seguida, retorna ao início da introdução.
  11. Wilhelm Roscher, System der Volkswirthschaft, 4th ed., vol. 2 (Stuttgart: Cotta’scher, 1865), 66.
  12. Karl Marx and Friederick Engels, Collected Works, vol. 42, 507–8.
  13. Ver especialmente Karl Marx, Capital, vol. 3 (London: Penguin, 1981), 878.
  14. Para uma discussão introdutória da teoria de Liebig, ver William H. Brock, Justus von Liebig: The Chemical Gatekeeper (Cambridge: Cambridge University Press, 1997), chapter 6.
  15. Foster, Marx’s Ecology, 153.
  16. Michael Perelman, “The Comparative Sociology of Environmental Economics in the Works of Henry Carey and Karl Marx,” History of Economics Review 36 (2002): 85–110.
  17. Eugen Dühring, Carey’s Umwälzung der Volkswirthschaftslehre und Socialwissenschaft (Munich: Fleischmann, 1865), xiii.
  18. Eugen Dühring, Kritische Grundlegung der Volkswirthschaftslehre (Berlin: Eichhoff, 1866), 230.
  19. Dühring, Carey’s Umwälzung, 67. Embora Dühring não use essa expressão para caracterizar a teoria de Liebig, Karl Arnd afirma que ela é assombrada por um “fantasma da exaustão do solo”. Ver Karl Arnd, Justus von Liebig’s Agrikulturchemie und sein Gespenst der Bodenerschöpfung (Frankfurt am Main: Brönner, 1864).
  20. Liebig, Einleitung in die Naturgesetze des Feldbaues (Braunschweig: Friedrich Vieweg, 1862), 125.
  21. Sobre a importância de Anderson para todo o argumento de Marx, ver Foster, Marx’s Ecology, 142–47.
  22. Liebig escreveu intencionalmente em termos provocativos na esperança de restaurar sua fama profissional e, nesse sentido, a sétima edição foi jbem sucedida. Ver Mark R. Finlay, “The Rehabilitation of an Agricultural Chemist: Justus von Liebig and the Seventh Edition,” Ambix 38, no. 3 (1991): 155–66.
  23. Dühring, Carey’s Umwälzung, 67.
  24. Marx and Engels, Collected Works, vol. 43, 384.
  25. Roscher, Nationalökonomie des Ackerbaues, 65.
  26. Marx-Engels Archive (MEA), International Institute of Social History, Sign. B 107, 31–32. Albert Friedrich Lange, J. St. Mill’s Ansichten über die sociale Frage und die angebliche Umwälzung der Socialwissenschaft durch Carey (Duisburg: Falk and Lange, 1866), 197.
  27. Ibid., 203.
  28. MEGA IV, vol. 32, 42.
  29. Julius Au, Hilfsdüngermittel in ihrer volks- und privatwirtschaftlichen Bedeutung (Heidelberg: Verlagsbuchhandlung von Fr. Bassermann, 1869), 179.
  30. MEGA IV, vol. 32, 42.
  31. Marx and Engels, Collected Works, vol. 43, 527.

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