Onde Seaspiracy acerta sobre a exploradora indústria da pesca

Leia Marxistas
8 min readSep 14, 2021

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Por Spencer Roberts. Texto publicado em 14 de abril de 2021 em Jacobin.

Traduzido por Clarisse Lana e revisado por Rafaela Debastiani e Rebecca Borges.

A difamação contra o documentário Seaspiracy [no Brasil, “Seaspiracy — Mar Vermelho”], da Netflix, diz muito sobre a influência da indústria da pesca nas ciências do mar. De alguma forma, permitimos que os próprios cientistas da indústria pesqueira definam as metas para uma pesca sustentável — uma vergonha que leva a um pesadelo ecológico.

O escrutínio emergente em torno do Seaspiracy nos desvia das questões maiores que ele levanta. (Valery Sharifulin / TASS via Getty Images)

“QAnon dos oceanos”, “eco-fascismo”, “propaganda vegana auto-indulgente” — cientistas da indústria pesqueira estão irritados com Seaspiracy, o novo especial da Netflix que está entre os mais vistos em todo o mundo, e detalha o impacto da pesca industrial na vida marinha e a cumplicidade de selos de certificação e até mesmo de alguns grupos de conservação dos oceanos. A controvérsia que gira em torno de Seaspiracy parece estar centrada nas estatísticas, mas sob a superfície se escondem questões mais profundas sobre a influência da indústria nas ciências do mar.

Seaspiracy tem seus defeitos. Seu estilo de entrevista é abrasivo. O documentário tem animações em excesso. Faz algumas interpretações estatísticas erradas e várias simplificações exageradas. No entanto, o filme é sobretudo preciso e devastadoramente detalhado, levando espectadores ao redor do mundo a questionar os valores da indústria que se tornaram parte integral da ortodoxia das ciências do mar: Por que chamamos as populações de peixes de “estoques”? O que significa chamá-las de “subaproveitadas”? Como eles calculam o rendimento máximo sustentável? Ele é realmente sustentável?

A resposta da academia ao documentário Seaspiracy foi rápida, severa e desleixada. Embora documentos supostamente vazados tenham mostrado que grupos como o National Fisheries Institute [Instituto Nacional da Pesca] vinham preparando uma resposta de mídia por semanas, Sustainable Fisheries [Pesca Sustentável], a página de checagem de fatos da Universidade de Washington, financiada pela indústria, afirmou falsamente que um dos estudos que serviram de fonte para o filme — o estudo que estima que de 20 a 32 por cento de toda a vida marinha importada para os Estados Unidos seria capturada ilegalmente — havia sido retratado. Ironicamente, eles tiveram que retratar a reivindicação. Sustainable Fisheries UW [Pesca Sustentável da Universidade de Washington] questionou corretamente uma estatística de captura acidental de tartarugas marinhas, para a qual Seaspiracy repetiu um erro cometido em um artigo técnico da ONG Sea Turtle Conservancy [Conservação das Tartarugas Marinhas, em tradução livre]. Mesmo que os cientistas da pesca tenham rastreado o estudo original, eles não parecem ter lido o resumo, que revelou que a quantia quase global foi atribuída erroneamente aos Estados Unidos. Em vez disso, eles atacaram sua credibilidade, revelando o modus operandi das relações públicas da indústria pesqueira.

É justo dizer que Seaspiracy citou alguns estudos que podem ser considerados datados ou contestados, mas também deixou de fora algumas das estatísticas mais angustiantes publicadas nos últimos anos. A análise mundial mais recente estimou a captura acidental de pelo menos 8,5 milhões de tartarugas marinhas em um período de dezessete anos. Reconstruções de captura mostram que o volume total pescado atingiu o pico em 1996 e vem diminuindo desde então, apesar da industrialização exponencial e da maior penetração das frotas pesqueiras. Uma investigação global dos padrões de navegação estima que até um quarto das embarcações de pesca possam usar trabalho forçado.

A estatística mais controversa do filme é a projeção de reduções globais das populações de peixes exploradas comercialmente até 2048. O que a indústria não menciona é que a polêmica foi gerada por ela mesma. Desde a publicação do estudo “Impactos da perda de biodiversidade sobre os serviços ambientais oceânicos” na revista Science em 2006, grupos da indústria têm repreendido persistentemente os meios de comunicação por citá-lo. O professor Ray Hilborn, fundador do Sustainable Fisheries UW, emergiu como o crítico mais proeminente deste estudo. Uma década depois, ele seria exposto não apenas por receber milhões de dólares em financiamento da indústria de frutos do mar, mas também por não declarar conflito de interesses. Embora ele tenha trabalhado com o autor da projeção de 2048 em um artigo subsequente, este estudo não corrigiu ou refutou as conclusões do anterior, mas sim citou-as.

O autor principal de ambos os estudos é um biólogo da conservação chamado Boris Worm, que disse ter se tornado “um pouco mais otimista” com a cooperação dos cientistas pesqueiros no segundo estudo, mas afirmou explicitamente que o trabalho “não revisou as projeções originais”. Quando finalmente o fez, em 2016, ele esclareceu que os modelos atualizados eram menos ameaçadores, mas mantiveram-se “preocupantes”. Hilborn, no entanto, continua a fazer uma cruzada em nome da pesca industrial, advogando publicamente contra reservas marinhas e fornecendo aos legisladores depoimentos sobre os perigos do “subaproveitamento” da pesca. A resposta de sua fundação a Seaspiracy contesta quatro estatísticas entre mais de cem, todas elas minimizando o grau do problema e criticando a pesquisa dos colegas, o que levanta a questão: o filme está cheio de erros ou apenas incomoda a indústria?

A controvérsia duradoura sobre a projeção de 2048 é emblemática de uma divisão muito mais profunda nas ciências do mar, entre aqueles que vêem peixes como vida selvagem a ser protegida em oposição àqueles que os veem como recursos a serem extraídos — respectivamente, biologia da conservação contra a ciência da pesca. Enquanto os biólogos conservacionistas visam a restaurar as populações de peixes, o objetivo explícito da ciência da pesca é reprimir sua recuperação. As fórmulas de modelagem simplistas nas quais a ciência da pesca moderna se baseia definem o nível populacional de máximo rendimento sustentável como metade da capacidade de suporte de uma população de peixes. Em teoria, isso atinge um equilíbrio entre a reprodução de indivíduos e fatores limitantes onde o crescimento populacional máximo — e, convenientemente, a lucratividade máxima — ocorrerá.

Isso significa que quando a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura afirma que dois terços dos “estoques de peixes [estão] dentro de níveis biologicamente sustentáveis” (afirmação por si só contestável), isso significa que a maioria dessas populações está em aproximadamente metade de seus níveis históricos, e o terço restante está ainda mais reduzido. Abaixo de 40 por cento, as populações são classificadas como sobreexploradas — nos Estados Unidos, entretanto, o limite é de 25 por cento. Qualquer população acima de 60 por cento da capacidade de carga é definida como “subaproveitada”. Essa filosofia não é apenas marcadamente diferente das práticas de pesca sustentadas por milênios por culturas indígenas, mas tornou-se uma das maiores ameaças à sua subsistência. Essencialmente, permitimos que os cientistas da indústria pesqueira definam as metas de pesca sustentável, o que seria algo como permitir que geólogos do petróleo definam as metas de emissão [de carbono].

No entanto, os cientistas da pesca não foram os únicos acadêmicos a criticar Seaspiracy. Embora recebido de forma bastante diferente por biólogos marinhos em todo o mundo, esses paradigmas da indústria estão profundamente enraizados na academia estadunidense. Sylvia Earle e Callum Roberts, os biólogos marinhos consultados por Seaspiracy, representam ideologias marginalizadas e recebem críticas por valorizar os peixes como vida selvagem, como diz a Dra. Earle, argumentando que nosso objetivo deveria ser minimizar, não maximizar, sua extração. Essa defesa a impediu de participar de reuniões como a primeira cientista-chefe do National Oceanic and Atmospheric Administration [Administração Nacional de Oceanos e da Atmosfera], assessorando o órgão regulador anteriormente denominado National Marine Fisheries Service [Serviço Nacional de Pesca Marinha] — agora NOAA Fisheries — cujo “objetivo principal”, diz ela, “é servir aos interesses da pesca comercial.”

Embora a mensagem do filme tenha inspirado uma reflexão sobre esses valores entre os espectadores em geral, parece que as instituições acadêmicas, tanto na ciência da pesca quanto na biologia marinha, podem ser algumas das últimas a considerá-los. Pelo menos foi assim que me senti depois de um verão pesquisando na UW (Universidade de Washington).

“Parece que teremos outra festa de quebra de ouriço”, minha pesquisadora-chefe riu, planejando o estudo de outro estudante sobre o conteúdo das gônadas de ouriço-do-mar. Meus olhos se arregalaram quando percebi que ela estava falando sobre os “meus” ouriços, cujo comportamento alimentar eu estava estudando em tanques na beira da estrada. Eles eram ouriços-do-mar vermelhos gigantes capturados na natureza — Strongylocentrotus franciscanus — a maior espécie do mundo. Eles podem crescer até cinquenta e quatro centímetros de espinha a espinha e viver por talvez duzentos anos. Alguns desses ouriços podem ter caminhado no fundo do mar sob as agitadas frotas de canoas das nações Salish pré-coloniais. Muitos provavelmente eram mais velhos do que eu. Eu queria libertá-los, mas hesitei em contestar, pois este projeto de pesquisa era uma oportunidade única para eu construir conexões e obter referências para a pós-graduação.

Enquanto carregava os ouriços perto do cais, a diretora do programa do laboratório marinho se aproximou de mim. Eu acenei nervosamente. “Obrigada”, disse ela, com seu forte sotaque senegalês. Ela me contou que viu em sua carreira prestigiosos pesquisadores de ouriços simplesmente deixarem ouriços capturados em tanques estagnados para morrer ao sol. “Claro”, respondi. Ela não deve ter ouvido falar que havia outros planos para eles. Quando cheguei ao outro lado do canal e desliguei o motor, puxei uma escova de tambor de plástico e comecei a fazer cócegas nos pés tubulares dos ouriços até que eles se soltassem. Inclinei-me sobre a amurada, colocando-os cuidadosamente na água e finalmente cheguei ao meu favorito — Houdini. Nunca fui capaz de projetar um recinto capaz de conter aquele.

Assistindo o pequeno ouriço desaparecer lentamente nas profundezas do estuário de Puget, não pude deixar de sorrir, redescobrindo o que eu sempre soube, mas aprendi a esquecer: a vida marinha é vida selvagem.

O escrutínio emergente em torno de Seaspiracy desvia das questões maiores que ele levanta. A vida na Terra começou no mar, e a vida humana sempre esteve ligada a ele. Devemos proteger nosso oceano, usando todas as estratégias à nossa disposição, e coletivamente reivindicar a autoridade para governar como ele é tratado daqueles que lucram com sua exploração.

Sobre o Autor

Spencer Roberts é um escritor científico, músico, ecologista e engenheiro solar de telhado do Colorado.

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