O significado da “Assim Chamada Acumulação Primitiva”

Leia Marxistas
8 min readJan 29, 2023

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Por Ian Angus. Publicado originalmente em Climate and Capitalism em 5 de setembro de 2022.

Traduzido por Caroline Rodrigues e revisado por Débora Cunha.

Um conceito chave em “O capital” de Karl Marx é amplamente mal compreendido.

Na Parte Oito do Capital, intitulada “A Assim Chamada Acumulação Primitiva”, Marx descreve os processos brutais que separaram os trabalhadores dos meios de subsistência e concentraram a riqueza nas mãos de proprietários de terra e capitalistas. É uma das partes mais dramáticas e agradáveis do livro.

É também uma fonte contínua de confusão e debate. Literalmente, dezenas de artigos tentaram explicar o que “acumulação primitiva” realmente significava. Teria ela ocorrido apenas num passado distante, ou continua até hoje? Seria palavra “primitiva” um erro de tradução? Deveria-se mudar o seu nome? O que era exatamente “a teoria de Marx sobre a acumulação primitiva”?

Neste artigo, escrito para meu próximo livro sobre A Guerra Contra os Comuns, argumento que Marx pensava que “acumulação primitiva” era um conceito enganoso e equivocado. A compreensão do que ele realmente escreveu ilumina dois conceitos marxistas essenciais: a exploração e a expropriação.

Esta é uma minuta, não minha palavra final. Aguardo com expectativa seus comentários, correções e sugestões.

Em 20 e 27 de junho de 1865, Karl Marx deu uma palestra em duas partes aos membros da Associação Internacional de Trabalhadores (a Primeira Internacional) em Londres. Em inglês claro e direto, ele se baseou em ideias que apareceriam no quase finalizado primeiro volume do Capital para explicar a teoria do valor, mais-valor, luta de classes e a importância dos sindicatos como “centros de resistência contra as invasões do capital”[1]. Como a tradução inglesa do Capital só seria publicada depois de sua morte, essas palestras foram a única oportunidade que os trabalhadores de língua inglesa tiveram de aprender essas ideias diretamente de seu autor.

Enquanto explicava como os trabalhadores vendem sua capacidade de trabalho, Marx perguntou retoricamente como surgiram dois tipos de pessoas no mercado — capitalistas que possuem os meios de produção e trabalhadores que precisam vender sua força de trabalho a fim de sobreviver.

“Como surge este estranho fenômeno onde encontramos no mercado um conjunto de compradores, possuidores de terras, máquinas, matérias-primas e meios de subsistência, todos eles, exceto a terra em seu estado bruto, sendo produtos da mão-de-obra e, por outro lado, um conjunto de vendedores que não têm nada para vender a não ser sua força de trabalho, seus braços e cérebros de trabalhadores? Onde um conjunto compra continuamente para ter lucro e enriquecer-se, enquanto o outro vende continuamente para ganhar seu sustento?

Uma resposta completa estava fora do escopo de sua palestra, disse ele, mas “a investigação sobre esta questão seria uma investigação sobre o que os economistas chamam de ‘Acumulação Anterior, ou Acumulação Original’, mas que deveria ser chamado de Expropriação Original”.

“Descobriremos que a assim chamada Acumulação Original não significa nada além de uma série de processos históricos, resultando em uma Decomposição da União Original existente entre o Homem Trabalhador e seus Instrumentos de Trabalho… A Separação entre o Homem do Trabalho e os Instrumentos do Trabalho uma vez estabelecida, tal estado de coisas se manterá e se reproduzirá em uma escala constantemente crescente, até que uma nova e fundamental revolução no modo de produção deva novamente derrubá-la, e restaurar o sindicato original em uma nova forma histórica.”

Marx sempre foi muito cuidadoso em seu uso das palavras. Ele não substitui acumulação por expropriação de forma leviana. A troca é particularmente importante porque esta foi a única vez em que ele discutiu o assunto em inglês — não foi filtrada através de uma tradução.

Em O Capital, o assunto ocupa oito capítulos na parte intitulada Die sogenannte ursprüngliche Akkumulation — posteriormente traduzido para o inglês como “So-called Primitive Accumulation” (A Assim Chamada Acumulação Primitiva). Mais uma vez, o uso cuidadoso das palavras de Marx é importante — ele acrescentou o “assim chamada” para fazer uma observação, que os processos históricos não eram primitivos e não eram de acumulação. Grande parte da confusão sobre a intenção de Marx reflete o fracasso em compreender seu intento irônico, aqui e em outros lugares.

No primeiro parágrafo ele nos diz que “ursprüngliche” Akkumulation é sua tradução das palavras acumulação anterior de Adam Smith. Ele colocou a palavra ursprüngliche (anterior) entre aspas assustadoras, sinalizando que a palavra é inapropriada. Por alguma razão as aspas são omitidas nas traduções em inglês, portanto sua ironia é perdida.

Nos anos 1800, primitivo era sinônimo de original — por exemplo, a Igreja Metodista Primitiva afirmava seguir os ensinamentos originais do Metodismo. Como resultado, a edição francesa de O Capital, que Marx editou na década de 1870, traduziu ursprüngliche como primitivo; o que passou para a tradução inglesa de 1887, e estamos presos à acumulação primitiva desde então, mesmo que o significado da palavra tenha mudado.

Marx explica por que ele usou assim chamada e aspas irônicas ao comparar a ideia de acumulação anterior à doutrina cristã de que todos nós sofremos porque Adão e Eva pecaram em um passado mítico distante. Os proponentes da acumulação anterior contam um conto infantil equivalente:

“Há muito, muito tempo atrás, havia dois tipos de pessoas; uma, a elite diligente, inteligente e, sobretudo, frugal; a outra, os malandros preguiçosos, gastando sua substância, e mais, na vida desordenada. … Assim, aconteceu que o primeiro tipo acumulou riqueza e o segundo tipo finalmente não tinha nada para vender, exceto suas próprias peles. E a partir deste pecado original data a pobreza da grande maioria que, apesar de todo seu trabalho, até agora não tem nada para vender a não ser eles mesmos, e a riqueza de uns poucos que aumenta constantemente, embora tenham deixado de trabalhar há muito tempo”.

“Tal insipidez infantil nos é pregada todos os dias em defesa da propriedade”, mas quando consideramos a história real, “é um fato notório que a conquista, a escravidão, o roubo, o assassinato, em suma, a força, desempenham o maior papel”. Os capítulos de “A Assim Chamada Acumulação Primitiva descrevem os processos brutais pelos quais “grandes massas de homens [foram] repentina e forçosamente arrancados de seus meios de subsistência, e lançados ao mercado de trabalho como proletários livres, desprotegidos e sem direito”.

“Estes homens recém-libertados só se tornam vendedores de si mesmos depois que todos os seus próprios meios de produção e todas as garantias de sua existência oferecidas pelas velhas instituições feudais lhes foram roubadas. E esta história, a história de sua expropriação, está escrita nos anais da humanidade em letras de sangue e fogo”.

O relato de Marx se concentra na expropriação na Inglaterra porque a desapropriação dos trabalhadores foi mais completa lá, mas ele também se refere ao assassinato em massa dos povos indígenas nas Américas, à pilhagem da Índia e ao comércio de escravos africanos — “estes procedimentos idílicos são os principais momentos da acumulação primitiva”. Esta frase, e outras como esta, ilustram a abordagem consistentemente sarcástica de Marx sobre a acumulação primitiva. Ele não está descrevendo a acumulação primitiva, ele está condenando aqueles que usam o conceito para esconder a realidade brutal da expropriação.

Não entender que Marx estava problematizando o conceito de “acumulação primitiva” levou a outra concepção errônea — que, para Marx,isso ocorria apenas num passado distante, quando o capitalismo estava nascendo. Era isso que Adam Smith e outros escritores pro-capitalistas queriam dizer com a acumulação anterior, e como vimos, Marx comparou essa visão com o mito do Jardim do Éden. Os capítulos de Marx sobre a assim chamada acumulação primitiva enfatizam as expropriações violentas que lançaram as bases do capitalismo primitivo, porque ele estava respondendo à alegação de que o capitalismo evoluiu pacificamente. Mas seu relato também inclui as Guerras do Ópio dos anos 1840 e 1850, as Limpezas das Terras Altas na Escócia capitalista, a fome criada pela colonização que matou um milhão de pessoas em Orissa, na Índia, em 1866, e os planos de cercar e privatizar terras na Austrália. Tudo isso ocorreu durante a vida de Marx e enquanto ele escrevia O Capital. Nada disso fazia parte da pré-história do capitalismo.

As expropriações que ocorreram nos primeiros séculos do capitalismo foram devastadoras, mas passam longe de terem sido terminadas. Na opinião de Marx, o capital não podia descansar ali — seu objetivo final era “expropriar todos os indivíduos dos meios de produção”[2]. Em outro lugar, ele escreveu sobre os grandes capitalistas “desapropriando os capitalistas menores e expropriando o resíduo final dos produtores diretos que ainda têm algo a desapropriar”[3].

Muitas vezes usamos a palavra acumulação de capital de forma descompromissada, como recolher ou reservar, mas para Marx ela tinha um significado específico, o aumento de capital pela adição de mais-valor[4], um processo contínuo que resulta da exploração do trabalho assalariado. Os exemplos que ele descreve em “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” referem-se todos a roubo, desapropriação e expropriação — apropriações discretas sem troca equivalente. Expropriação, não acumulação.

Na história do capitalismo, vemos uma interação constante e dialética entre as duas formas de roubo de classe que Peter Linebaugh chamou de X² — expropriação e exploração. “A expropriação é anterior à exploração, mas as duas são interdependentes. A expropriação não apenas prepara o terreno, por assim dizer, ela intensifica a exploração”[5].

A expropriação é um roubo às claras. Inclui cercamento forçado, desapropriação, escravidão e outras formas de roubo, sem troca equivalente. A exploração é um roubo oculto. Os trabalhadores parecem receber pagamento integral por seu trabalho na forma de salários, mas, na verdade, o empregador recebe mais valor do que paga.

O que Adam Smith e outros descreveram como uma acumulação gradual de riqueza por parte de homens que eram mais industriosos e frugais do que outros, foi na verdade uma expropriação violenta e forçada que criou o contexto original para exploração e continuou a expandi-lo desde então. Como John Bellamy Foster e Brett Clark escrevem em O Roubo da Natureza:

“Como qualquer sistema complexo e dinâmico, o capitalismo possui tanto uma força interna que o impulsiona, quanto condições objetivas fora de si mesmo que estabelecem seus limites, cujas relações estão em constante mudança. A dinâmica interna do sistema é governada pelo processo de exploração da força de trabalho, sob o pretexto de troca igualitária, enquanto sua relação primária com seu ambiente externo é de expropriação”[6].

Em resumo, Marx não tinha uma “teoria da acumulação primitiva”. Ele dedicou oito capítulos de O Capital a demonstrar que os economistas políticos que promoveram tal teoria estavam errados, que ela era um “conto infantil” inventado para maquiar a história real do capital. A preferência de Marx pelo termo “expropriação original” não era apenas uma brincadeira com as palavras. Essa expressão captou sua visão de que “a expropriação da terra dos produtores diretos — propriedade privada para alguns, envolvendo a não propriedade da terra para outros — é a base do modo de produção capitalista”[7].

A separação continuada da humanidade de nossa relação direta com a Terra não foi e não é um processo pacífico: ela está escrita em letras de sangue e fogo.

Por isso, ele precedeu as palavras “acumulação primitiva” com “a assim chamada”.

Para mais notas, referências e links relacionados a esse texto, ver a publicação original.

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