Nossa! O comunismo com certeza vai gostar!

Leia Marxistas
6 min readFeb 23, 2021

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Resenha de livro por Ian Angus disponível em Climate & Capitalism.

Traduzido por Débora Cunha. Revisado por Rebecca Borges.

O “Fully Automated Luxury Communism” [“Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado”] trivializa a crise ambiental global com modismo tecnológico mal pesquisado e planos políticos que não chegam perto de resolver os problemas do mundo.

Quando eu tinha dez anos, li e reli uma pilha de revistas Modern Mechanix [Mecânica Moderna] de décadas atrás, as quais encontrei no porão do meu avô. Durante a Grande Depressão, a MM presenteou seus leitores com relatos empolgantes de maravilhas tecnológicas que iriam mudar o mundo, muito em breve.

Edição após edição prometia o tipo de coisas que mais tarde foram parodiadas no programa de TV The Jetsons — carros voadores, cidades com ar condicionado, controle do clima, robôs e assim por diante.

A mesma editora produziu a The Technocrats’ Magazine [A Revista dos Tecnocratas], dedicada à alegação de que se engenheiros dirigissem o governo, novas tecnologias levariam a um mundo de fartura e a uma semana de trabalho de 13 horas.

Fully Automated Luxury Communism não tem as capas espalhafatosas, mas, fora isso, me lembra daquelas revistas. Se acreditarmos em Aaron Bastani, novas maravilhas tecnológicas estão prestes a criar “uma sociedade na qual o emprego é eliminado, a escassez substituída pela abundância e onde trabalho e lazer se misturam”.

O título não é uma piada — o autor, um jornalista de esquerda que frequentemente aparece na televisão britânica, argumenta seriamente que a nova tecnologia resolverá todos os nossos problemas e dará início a uma nova era de abundância para todos, tornando o capitalismo obsoleto. A agricultura e as máquinas a vapor alteraram radicalmente as sociedades humanas no passado, e agora uma Terceira Ruptura baseada no processamento de informações e microchips começou — “um mundo dramaticamente diferente do nosso é inevitável e está próximo”.

Capítulo após capítulo de Fully Automated Luxury Communism elogia o maravilhoso mundo de amanhã. As células solares fornecerão energia ilimitada de forma tão barata que os combustíveis fósseis serão rápida e totalmente substituídos. Robôs e autômatos inteligentes farão todo o trabalho árduo e a maioria das coisas fáceis também. A engenharia genética vai “significar o fim das doenças hereditárias e relacionadas com a idade.” Leite, ovos e todos os tipos de carne serão cultivados em tonéis, transformando todos nós em veganos e eliminando as fazendas industriais. Foguetes baratos construídos por impressoras 3-D irão minerar asteroides (“talvez já em 2030”), portanto, nunca ficaremos sem matéria-prima.

Tudo isso está relacionado com o tipo de entusiasmo mágico que eu, aos dez anos, adorava nas revistas do meu avô. Mudanças radicais estão chegando mais cedo do que esperamos, e cada uma recebe a consagração futurista final — mudança de paradigma!

Caso você duvide que tais mudanças radicais possam acontecer rapidamente, Bastani repete a história frequentemente contada da “Crise de Esterco de Cavalo” que “amedrontou os corações dos londrinos” em 1894. Havia tantos cavalos na cidade que, o The Times calculou: “em cinquenta anos, todas as ruas de Londres estarão enterradas sob nove pés de estrume”. Uma conferência de estudos urbanos realizada quatro anos depois considerou o problema insolúvel — mas é claro que ele desapareceu quando os automóveis substituíram os cavalos alguns anos depois.

Da mesma forma, Bastani nos diz: “Em algumas décadas, os problemas aparentemente terminais de hoje parecerão tão absurdos quanto a crise de esterco de Londres em 1894 parece para nós.”

Esta foi minha primeira pista de que a pesquisa de Bastani não é confiável, porque a Crise de Esterco de Cavalo é um mito. O artigo que ele cita com confiança nunca foi publicado no The Times ou em qualquer outro lugar, e essa conferência de estudos urbanos não aconteceu. O próprio The Times diz que a história é “fake news”. Uma simples pesquisa na Internet teria mostrado a ele que a anedota e sua conclusão são, bem, esterco de cavalo.

O resto de sua pesquisa é tão superficial quanto. Ele não fornece nenhuma nota de rodapé, então suas afirmações são difíceis de verificar, mas sua bibliografia lista principalmente artigos de jornais e revistas, não estudos científicos. Seu relato entusiasmado da Revolução Verde da Índia, por exemplo, se apóia inteiramente em um artigo de revista do anti-ambientalista Gregg Esterbrook, ignorando muitos estudos sobre os danos sociais e ambientais causados ​​pela dependência de sementes patenteadas e fertilizantes sintéticos. Seus relatos sobre robôs e mineração espacial baseiam-se fortemente em declarações de empreendedores cuja principal preocupação é impressionar os investidores. Sinto muito, mas Elon Musk não é um guia confiável.

Há outro problema com a história do esterco de cavalo. Enquanto os carros resolviam alguns problemas, eles criavam problemas maiores, incluindo poluição do ar, mudanças climáticas, expansão urbana e mais de um milhão de mortes no trânsito todos os anos. Nem mesmo uma vez Bastani deu a entender que suas novas e empolgantes tecnologias podem ter desvantagens. A engenharia do genoma humano não apresenta perigos? As fábricas de carne sintética não terão impacto ambiental? Ele nos diz que os mineiros espaciais moverão asteroides ricos em minerais para mais perto da Terra, mas não questiona a sabedoria em empurrar rochas espaciais gigantescas em direção ao nosso vulnerável planeta. Se lembra dos dinossauros?

Uma sociedade ecológica certamente precisará de tecnologias avançadas — mas implementá-las de maneira adequada dependerá do princípio da precaução, não de uma torcida impensada.

Ele não diz isso, mas o argumento de Bastani é paralelo à afirmação feita por ecomodernistas pró-capitalistas, de que a tecnologia vai “desacoplar” o crescimento econômico dos danos ambientais. A diferença é que eles acham que o capitalismo vai durar para sempre, enquanto ele pensa que o mesmo não pode sobreviver ao crescimento desacoplado que reduz radicalmente o custo de energia e bens. “Diante do suprimento ilimitado e virtualmente gratuito de qualquer coisa, sua lógica interna começa a falhar. Isso ocorre porque seu pressuposto central é que a escassez sempre existirá.”

Como Bill Jefferies apontou, isso confunde o capitalismo como tal com a teoria econômica neoclássica. Longe de ser ameaçado pela abundância, o capital prospera com ela. Se o custo da energia e das matérias-primas cair como Bastani espera, algumas corporações podem desaparecer, mas outras aproveitarão os baixos custos para criar novas indústrias e fabricar mais mercadorias. A tecnologia pode mudar o capitalismo, mas nada menos que a revolução irá impedir seu crescimento fatal.

Bastani frequentemente cita Marx, mas sua economia é keynesiana, sua história é de um determinismo tecnológico grosseiro e seu programa político não vai além das reformas social-democratas.

Depois de prometer “abundância antes impensável” e o fim do trabalho, o que ele realmente defende é um estado de bem-estar social expandido e uma política eleitoral tradicional. Marx disse que os trabalhadores devem se emancipar, mas Bastani nos diz que “a maioria das pessoas só pode ser politicamente ativa por breves períodos de tempo”, então eles devem depender de políticos populistas que ganharão seus votos prometendo luxo ilimitado para todos.

Esses políticos promoverão o desenvolvimento econômico local incentivando cooperativas de trabalho e cooperativas de crédito, enquanto os bancos centrais mantêm as taxas de juros baixas e investem na “automação que serve ao povo”. Todos terão acesso garantido à energia, moradia, saúde e educação, pagos em parte por um imposto sobre as emissões de gases de efeito estufa.

São medidas progressistas que merecem apoio, mas nenhuma delas vai um passo além dos limites do capitalismo. A “transformação tão sísmica como a chegada da agricultura” não está à vista.

Como as revistas Modern Mechanix, o livro de Bastani é longo em especulações sensacionais, mas as páginas finais não cumprem as promessas da capa. Ele trivializa a crise ambiental global com um modismo tecnológico mal pesquisado e planos políticos ​​que não chegam perto de resolver os problemas do mundo. No final das contas, Fully Automated Luxury Communism é apenas um slogan vazio.

Essa tradução foi possível graças às contribuições feitas pelo Apoia.se. Se você puder e quiser colaborar, o link é apoia.se/leiamarxistas

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Se organizar direitinho, todo mundo lê.

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