Neoliberalismo e a violência nos conflitos ambientais na América Latina.
Por Candela de la Vega* e Maria Alejandra Ciuffolini**.
Publicado em 30 de julho de 2020 em Ecología Política.
Traduzido por Patrícia Alfaro e Revisado por Renata Lopes.
Resumo: Este artigo parte da observação de uma escalada alarmante da violência visível contra militantes e populações que lutam em defesa da natureza e dos bens comuns na América Latina. O que sustentamos aqui é que a extensão dos crimes, assassinatos e desaparecimentos relacionados a processos de luta ambiental não é apenas, como se poderia inferir a partir de uma leitura superficial, um indicador do caráter violento dos repertórios de ação dos adversários ou da incapacidade dos Estados de controlar e governar os conflitos em seus territórios. Essa violência é, em primeiro lugar, a manifestação mais evidente do caráter antagônico com que a política neoliberal é imposta nos territórios e nas populações e, em segundo lugar, a confirmação de que as resistências ambientais participam de uma nova escala de intensificação das lutas face ao neoliberalismo, o que aprofunda a disputa pela trajetória regional dos processos políticos atuais.
Palavras-chave: violência, neoliberalismo, capitalismo, governamentalidade
Introdução
Por sua capacidade de se estabelecer como um modo de vida — sem que a forma do regime político tenha muita influência–, a América Latina é um dos espaços onde o neoliberalismo adquiriu as notas mais radicais, se considerarmos seu impacto na reorganização do Estado, mercado, política e sociedade. Consequentemente, o cenário latino-americano do século XXI mostra claramente o efeito devastador de várias décadas de aplicação e validade da matriz capitalista e neoliberal: intensificação da desigualdade social, aumento da dívida externa, instabilidade econômica e institucional e consolidação de um modelo de desenvolvimento que atualiza as dinâmicas do colonialismo extrativista e predatório.
Particularmente em relação aos conflitos ambientais, a proliferação de projetos de exploração da natureza na região tem sido um processo sustentado nos últimos trinta anos com uma incidência marcante nas condições desiguais de acesso, distribuição e uso dos bens naturais. Também é verdade que, neste momento, as formas produtivas do capitalismo neoliberal renovaram as estratégias coloniais que a) fazem do racismo o dispositivo privilegiado para enunciar, inferiorizar e violentar às populações em conflito; b) reproduzem um modelo de exploração organizado a partir do Norte global, que atravessa, perfura e até, em alguns casos, submete os Governos dos nossos países do Sul, deixando-os como meros administradores e guardiões de seus interesses, e c) inscrevem a subalternidade , novamente, como a marca e condição do continente e seus recursos.
Tudo isso explica a intensa resistência de diferentes populações e coletivos como uma constante. Basta considerar o ano de 2019 para reconhecer, por um lado, como as revoltas populares mais visíveis no Chile, Bolívia, Colômbia, Haiti e Equador incluíram o questionamento das lógicas extrativistas dos bens naturais e seu impacto nos modelos de desenvolvimento e bem-estar das maiorias. Por outro lado, o passado 2019 não deixou de ser um momento de ativação do descontentamento socioambiental diante do que Fermín (2019) chama de «ecocídios de 2019»: a queima de centenas de milhares de hectares da selva amazônica ou das planícies de Chiquitos (Bolívia); a expansão das minas de lítio na América do Sul; o uso massivo de agrotóxicos na produção agropecuária; o derramamento de três mil litros de ácido sulfúrico nas águas do Mar de Cortés (México) ou o derramamento de petróleo do oleoduto Norperuano; o avanço da derrubada de florestas na Reserva Ecológica Mache-Chindul (Equador), nas Dunas de Baní (República Dominicana) ou na selva de Misiones (Argentina).
Se a ativação da resistência nas comunidades e organizações tem sido constante, a resposta repressiva — por agentes públicos ou privados — também tem sido firme, o que nos devolve uma escalada alarmante de violência visível contra militantes e populações em luta.[1] Embora esses casos nem sempre sejam divulgados, os relatórios anuais do observatório britânico Global Witness (2018) são uma amostra exemplar: desde que esse observatório começou a publicar informações sobre as mortes de defensores da terra e do meio ambiente em 2012, a América Latina tem sido sempre a região com mais mortes registradas. Em seus relatórios dos últimos três anos, a mineração, o petróleo e o agronegócio são os setores econômicos ligados a mais assassinatos. A primeira posição como o país latino-americano mais violento, segundo a contagem dos últimos dois anos, é disputada por Brasil e Colômbia.
A situação de violência e intimidação é agravada em setores específicos. O relatório de 2019 da Anistia Internacional alerta que as lutas indígenas estavam entre as situações mais perigosas. Essas comunidades sempre levantaram sua resistência com a reivindicação irrenunciável pelo uso e acesso à terra — e ao território –, que lhes é expropriado através do estabelecimento de projetos extrativistas em suas terras ancestrais sem nenhum consentimento prévio ou informado. A invasão, degradação ou apropriação ilegal de terras explicam a migração de comunidades e famílias que aumentam o número de refugiados e deslocados ambientais expostos a situações de extrema violência, abuso e discriminação (IOM, 2019: 112). Como se isso não bastasse, está muito bem registrado que são majoritariamente mulheres que, em todo o continente, compõem os coletivos de defesa dos territórios. Figuras emblemáticas como Berta Cáceres e Máxima Chaupe exemplificam isso.
Desta maneira, o que sustentamos aqui é que a extensão dos crimes, assassinatos e desaparecimentos relacionados a processos de luta ambiental não é apenas, como uma leitura superficial poderia sugerir, um indicador da natureza violenta dos repertórios de ação dos adversários ou da incapacidade dos Estados de controlar e governar os conflitos em seus territórios com mais ou menos hegemonia e mediação política. Essa violência é, em primeiro lugar, a manifestação mais evidente do caráter antagônico com que a política neoliberal se impõe aos territórios e populações e, em segundo lugar, a confirmação de que as resistências ambientais participam de uma nova escala de intensificação das lutas contra o neoliberalismo, que aprofunda a disputa pela trajetória regional dos processos políticos atuais.
Neoliberalismo e gestão do conflito social
Compreender o neoliberalismo como uma força política em disputa antagônica com outras exige aceitar que ele é muito mais do que uma trama de variáveis econômicas ou um conjunto de políticas econômicas ou sociais. É um modo de governo capitalista sobre sujeitos e territórios que justifica, promove e implementa uma determinada disposição da ordem sociopolítica. Inclusive, como aponta De Lagasnerie (2015), a defesa teórica e ética da liberdade individual é tão radical que mobiliza promessas de emancipação e revolução e, como aponta Brown (2015), tem a incrível capacidade de se apagar como “ideologia dominante”. Ainda assim, é um projeto político que, como tal, engendra relações de força antagônica com outros projetos e alternativas de ordem, das quais participa.
Em geral, essa inscrição antagônica das forças neoliberais em processos de conflito e luta tende a se esconder atrás de uma singular economia da conflitividade, ou seja, atrás de uma forma específica de apresentar e governar o conflito social. Não se trata de eliminar ou reprimir — em primeira instância — qualquer expressão coletiva de descontentamento ou oposição. Antes disso, a ordem neoliberal caracteriza-se por ter criado e sustentado uma série de estratégias destinadas a reduzir os conflitos sociais a níveis e códigos aceitáveis, ou seja, torná-los gerenciáveis dentro das fronteiras, códigos e linguagens da própria racionalidade neoliberal.
Nesse sentido, em nossa pesquisa sobre conflitos e lutas sociopolíticas na região,[2] reconhecemos duas estratégias principais de gestão neoliberal dos conflitos sociais:
A primeira dessas estratégias consiste na instituição de novas áreas de preocupação suscetíveis de serem politizadas. Longe dos grandes discursos que a política tradicional contemplava como legítimas preocupações sociais da conflitividade (autonomia nacional, desenvolvimento, inclusão social, emancipação ou mesmo imperialismo), a racionalidade neoliberal abriu novos temas, elementos, atividades e inquietações como potencialmente politizáveis. A”vida saudável”, os “espaços verdes”, a “saúde esportiva”, os “animais de estimação”, “feminilidade”, “livre expressão” de “identidades folclóricas” ou mal-estar moral devido à “corrupção” fazem parte do código do neoliberalismo para ler o conflito social, produzir narrativas sobre suas causas e consequências, representá-lo politicamente e, a partir daí, gerenciá-lo.
Em segundo lugar, destaca a modulação individual de desejos e necessidades mobilizados em um processo de conflito. Nesse sentido, é certo que o neoliberalismo vem estabelecendo um novo substrato para demandas por direitos novos ou ampliados e conquistas importantes em relação à consagração da liberdade individual como princípio da ordem ético-política. Mas é justamente a garantia dessas liberdades individuais que abre caminho para abandonar a reivindicação coletiva e dedicar-se aos assuntos privados com uma atitude mais “empreendedora” e condizente com a “responsabilidade individual” (Han, 2014; Torres, 2019). Trata-se de conceber e possibilitar o trânsito em direção a soluções individuais para problemas gerados socialmente. Nesse plano, a codificação do conflito político nos termos e canais de ordem e a institucionalidade jurídica representa uma das arestas mais analisadas. Por exemplo, a judicialização das disputas em torno da natureza entra neste código quando seu tratamento é estabelecido como “acordos” — geralmente a título de compensação — entre os agentes diretamente envolvidos nos conflitos (De la Vega, 2013; Seoane , J. e Roca Pamich , 2019).
Ambas as estratégias traduzem a máxima neoliberal de governar sujeitos de tal forma que a intervenção física e direta é mínima. Governar, na lógica neoliberal, não significa impor coerção, mas conduzir, orientar condutas e, no melhor dos casos, produzir subjetividades que permitam aos indivíduos “andar sozinhos” — parafraseando a fórmula althusseriana.
Capitalismo e conflito social
Contudo, apesar da eficiência dessas formas de governar os conflitos sociais, é preciso reconhecer que, em sociedades capitalistas como a nossa, é constante a possibilidade de surgirem conflitos sociais com a capacidade de desnudar e vulnerar as bases da ordem social, embora não possamos antecipar exatamente quando, onde e com quais particularidades. É que essa condição de ameaça latente de conflito social se inscreve nas próprias contradições que caracterizam o modo capitalista de organizar a produção-acumulação em nível global e as relações sociais que se estruturam por e além desse processo.
Para se reproduzir, o capital precisa mercantilizar e explorar volumes suficientes de natureza, corpos, territórios, trabalho remunerado e não remunerado. Essa exploração e acumulação representa uma tendência constante, expansiva e surpreendentemente adaptativa. Mas, além disso, a acumulação capitalista e a mercantilização se estendem — às vezes até se opõem — a todo um conjunto de relações culturais, étnicas, políticas, legais, territoriais e linguísticas. Por isso, o capitalismo não é apenas um sistema ou um modo de produção econômico: é também uma ordem social que se estrutura de forma racista e patriarcal, que acentua a separação entre humanidade e natureza e que torna possíveis, ao mesmo tempo que constringe, demandas democráticas e transformadoras. Em suma, as sociedades capitalistas não são apenas mercadorias até o fim, como dizem Fraser e Jaeggi (2019); existem “condições de possibilidade” não mercantis que são indispensáveis para a existência dessas mercadorias.
Os conflitos ambientais na região têm se mostrado como instâncias de evidente repúdio à crescente alienação do acesso a bens essenciais à vida, à persistente injustiça na distribuição da terra, à seletividade e ao racismo dos danos ambientais, aos deslocamentos por “ desastres naturais” e poluição e, igualmente, à violência patriarcal inscrita nas regras de distribuição e fruição dos bens naturais.
Justamente por isso, não é por acaso que esses conflitos ativam automática e sistematicamente os dispositivos da força repressiva em sua faceta mais carnal e feroz, como nos é apresentado hoje na região. Nesse limiar, a governamentalidade neoliberal não consegue conter ou canalizar as demandas e necessidades sociais, e a democracia formal-liberal opera no limite de suas possibilidades antes de se transformar em formas fascistas e autoritárias. As situações de hostilidade que este campo abrange mostram até que ponto falhou a máxima neoliberal de governar os sujeitos de forma que a intervenção física e direta seja mínima. Em vez disso, recorre-se a estratégias mais militaristas de regulação do conflito social.
Sem deixar de denunciar e alertar para a gravidade e preocupação da ativação neoliberal de estratégias militaristas, de exceção e de uso explícito da força para governar conflitos, as resistências ambientais hoje expressam um dos pontos de fuga por onde reaparece o campo antagônico contra o neoliberalismo. Esses conflitos expõem uma crise do neoliberalismo como forma de governo e do capitalismo como um projeto de sociedade sustentável e equitativo. Eles deixam em evidência que, para além das modulações dos processos e das instituições políticas da nossa América — progressista ou conservadora –, a dinâmica extrativista e poluidora se desdobra da mesma forma e, com ela, a violência à qual está associada. Mesmo assim, os conflitos ambientais, com suas vitórias e fracassos, ganharam na América Latina uma legitimidade que possibilita e amplia o debate político, ressignificando contradições e lutas como condições necessárias para processos políticos emancipatórios.
Referências
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Brown, W., 2015. El pueblo sin atributos: la secreta revolución del neoliberalismo. Barcelona, Malpaso.
De la Vega, C., 2013. «La definición del territorio en las leyes y políticas ambientales nacionales entre 1973 y 2010». Perspectivas de Políticas Públicas, 4, pp. 99–133.
De Lagasnerie, G., 2015. La última lección de Michel Foucault. Buenos Aires, FCE.
Díaz Roco, A., 2019. Informe de criminalización de la protesta social por oposición a la minería en América Latina. Situación 2017–2018. Santiago de Chile, OCMAL
Elmhirst, R., 2018. «Ecologías políticas feministas: perspectivas situadas y abordajes emergentes». Ecología Política, 54, pp. 53–59.
Fermín, C., 2019. «Los 10 ecocidios de 2019 en Latinoamérica». Rebelión (26 de diciembre). Disponible en: https://rebelion.org/los-10-ecocidios-del-2019-en-latinoamerica/, consultado el 27 de abril de 2020.
Fraser, N., y Jaeggi, R., 2019. Capitalismo. Una conversación desde la Teoría Crítica. Madrid, Ediciones Morata.
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Han, B., 2014. Psicopolítica. Buenos Aires, Herder.
Kauffer Michel, E. F., 2018. «Pensar el extractivismo en relación con el agua en América Latina: hacia la definición de un fenómeno sociopolítico contemporáneo multiforme». Sociedad y Ambiente, 16, pp. 33–57.
Laval, C., y P. Dardot, 2013. La nueva razón del mundo. Barcelona, Gedisa.
Organización Internacional para las Migraciones (OIM), 2019. Informe sobre las migraciones en el mundo, 2020. Ginebra, OIM.
Seoane, J., y B. Roca Pamich (coord.), 2019. Salir del neoliberalismo. Aportes para un proyecto emancipatorio en Argentina. Buenos Aires, Batalla de Ideas.
Torres, M., 2019. Neoliberalismo y subjetividad. Bogotá, Universidad Pedagógica Nacional.
Villegas, P., Machado, H., Gandarillas Marco A., Milanez, B. Wagner, L., Sandá Mera, A., y H. Scandizzo, 2014. Extractivismos: nuevos contextos de dominación y resistencias. Cochabamba, Cedib.
* Pesquisadora no grupo de pesquisa “El llano en llamas” (www.llanocordoba.com.ar). Doutora em Ciências Sociais (UBA). Pesquisadora de pós-doutorado no Centro de Pesquisas Jurídicas e Sociais da Universidade Nacional de Córdoba (UE-CONICET). Pesquisadora e professora da Universidade Católica de Córdoba (UA-CONICET), Argentina. Militante do Encuentro de Organizaciones, Córdoba. Email: a cande_dlv@yahoo.com.ar.
** Diretora do grupo de pesquisa “El llano en llamas” (www.llanocordoba.com.ar). Doutora em Ciências Sociais (UBA). Professora e pesquisadora da Universidade Nacional de Córdoba (CIJS-UE-CONICET), Argentina. E-mail: ma.ciuffolini@hotmail.com.
[1]. Os registros de muitas análises atuais confirmam isso (Alimonda et.al., 2017; Antonio y Rojas, 2016; Díaz Roco, 2019; Kauffer Michel, 2018; Elmhirst, 2018; Villegas et. al., 2014).
[2]. Ambas autoras fazem parte do grupo de pesquisa “El llano en llamas” (www.llanocordoba.com.ar), que desde 2004 se dedica ao estudo dos processos de luta e conflito social na Argentina e na América Latina.