Marx sobre gênero e família: um resumo

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18 min readAug 8, 2022

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por Heather Brown. Publicado em 1º de junho de 2014 em Monthly Review.

Traduzido por Rafael Nolibos. Revisado por Débora Cunha, Rebecca Borges e Rafaela Milara.

Muitas intelectuais feministas tiveram, na melhor das hipóteses, uma relação ambígua com Marx e com o marxismo. Uma das áreas de contenção mais importantes envolve a relação Marx-Engels.

Estudos de Georg Lukács, Terrell Carver e de outros mostraram diferenças significativas entre Marx e Engels na dialética, bem como em uma série de outras questões.1 Com base nesses estudos, explorei suas diferenças também em relação a gênero e a família. Isso é especialmente relevante para os debates atuais, uma vez que várias intelectuais feministas criticaram Marx e Engels pelo que consideram seu determinismo econômico. Contudo, tanto Lukács quanto Carver apontam para o grau de determinismo econômico como uma diferença significativa entre os dois. Ambos veem Engels como mais monista e cientificista do que Marx. Raya Dunayevskaya é uma das poucas a separar Marx e Engels quanto a gênero, ao mesmo tempo que também aponta para a natureza mais monista e determinista da posição de Engels, em contraste com a compreensão das relações de gênero dialética e mais sutil de Marx.2

Nos últimos anos, tem havido pouca discussão sobre os escritos de Marx sobre gênero e família, mas, durante os anos 1970 e 1980, esses escritos foram objeto de grande debate. Em vários casos, elementos da teoria geral de Marx foram fundidos com a teoria psicanalítica ou com outras formas de teoria feminista por intelectuais feministas como Nancy Hartsock e Heidi Hartmann.3 Essas intelectuais viam a teoria de Marx como essencialmente cega em termos de gênero, sendo necessária uma teoria adicional para entender também as relações de gênero. No entanto, elas mantiveram o materialismo histórico de Marx como um ponto de partida para a compreensão da produção. Além disso, várias feministas marxistas também fizeram suas próprias contribuições do final dos anos 1960 a 1980, particularmente na área da economia política. Por exemplo, Margaret Benston, Mariarosa Dalla Costa, Silvia Federici e Wally Seccombe, todas elas tentaram ressignificar o trabalho doméstico.4 Além disso, Lise Vogel buscou ir além dos sistemas duais em direção a uma compreensão unitária da economia política e da reprodução social.5 Nancy Holmstrom também mostrou que Marx pode ser usado para entender o desenvolvimento histórico da natureza feminina.6

A teoria de sistemas duais do patriarcado e do capitalismo, que era uma forma comum de feminismo socialista nas décadas de 1970 e 1980, foi vista por muitos como um projeto fracassado dos anos 1990 em diante. De toda forma, a queda do comunismo na União Soviética e na Europa Oriental provavelmente teve um efeito negativo na popularidade do feminismo socialista. Como Iris Young já havia argumentado, a teoria dos sistemas duais era inadequada, uma vez que era baseada em duas teorias muito diferentes da sociedade — uma envolvendo o desenvolvimento dinâmico histórico da sociedade, principalmente social, econômico e tecnológico, e a outra baseada em uma visão psicológica estática da natureza humana.7 Essas duas teorias são muito difíceis de conciliar por causa dessas grandes diferenças. No entanto, suas críticas ao que consideravam o determinismo de Marx, às categorias que não distinguem gênero e à ênfase na produção em detrimento da reprodução, forneceram um ponto de partida para o reexame da obra de Marx por meio de uma análise textual detalhada — além do trabalho das feministas marxistas mencionadas acima.

A obra de Marx continha elementos da ideologia vitoriana, mas há muito material interessante sobre gênero e família espalhados por seus escritos. Já em 1844, em seus Manuscritos econômico-filosóficos, Marx argumentou que a posição das mulheres na sociedade poderia ser usada como uma medida do desenvolvimento da sociedade como um todo. Ele certamente não foi o primeiro a fazer uma declaração como essa — Charles Fourier é frequentemente apontado como a inspiração para essa declaração –, mas, para Marx, isso foi mais do que simplesmente um apelo para que os homens mudassem a posição das mulheres. Em vez disso, Marx estava apresentando um argumento dialético diretamente relacionado à sua teoria geral da sociedade. Para que esta avançasse para além de sua forma capitalista, teriam de ser formadas novas relações sociais que não dependessem apenas de uma formulação de valor rudimentar e alienada. Os seres humanos deveriam se tornar capazes de ver uns aos outros como valiosos em si mesmos, em vez de apenas dar valor a um indivíduo de acordo com o que ele pode oferecer a outro. Nesse aspecto, as mulheres seriam particularmente significativas, uma vez que tendem a ser um grupo marginalizado na maioria, senão em todas as sociedades. Assim, homens e mulheres chegariam a um ponto de desenvolvimento em que um indivíduo seria valorizado por quem ele é, ao invés de qualquer categoria abstrata de homem, mulher etc.

Além disso, Marx parece apontar na direção do gênero como uma categoria dinâmica, e não estática. Certamente, Marx nunca fez essa afirmação diretamente; entretanto, nas obras Manuscritos, de 1844, e A ideologia alemã, ele fornece uma forte crítica e apresenta uma alternativa às visões tradicionais do dualismo natureza/sociedade. Em vez de natureza e sociedade existindo como duas entidades distintas que interagem entre si sem alterar fundamentalmente a essência de si mesmas ou da outra, Marx argumenta que as duas estão dialeticamente relacionadas. À medida que os seres humanos interagem com a natureza por meio do trabalho, tanto o indivíduo quanto a natureza mudam. Isso ocorre porque os seres humanos existem como parte da natureza, e o processo de trabalho fornece os meios para essa unidade temporária. Visto que a natureza e a sociedade não são entidades estáticas, Marx argumentava que não poderia haver uma noção trans-histórica do que é “natural”. Em vez disso, um conceito de “natural” só pode ser relevante para circunstâncias históricas específicas.

Embora não se deva traçar um paralelo muito próximo entre os dualismos natureza/cultura e homem/mulher — pois isso poderia levar a uma reificação dessas categorias que buscamos transformar –, o tipo de pensamento dialético que Marx evidencia em relação ao dualismo natureza/cultura também é evidente na discussão de Marx e Engels sobre a divisão do trabalho por gênero em A ideologia alemã. Aqui, eles apontam para a divisão de trabalho nas primeiras famílias como algo que não é completamente “natural”. Em vez disso, mesmo na breve discussão sobre o desenvolvimento da família, eles apontam que essa divisão do trabalho baseada no gênero é “natural” apenas para relações produtivas muito subdesenvolvidas, nas quais a biologia diferente das mulheres tornaria difícil para elas a realização de certas tarefas fisicamente exigentes. A implicação é que a suposta inferioridade das mulheres nessas sociedades é algo que pode mudar conforme a sociedade muda. Além disso, como um elemento social está envolvido, é necessário mais do que desenvolvimento tecnológico: as próprias mulheres terão que trabalhar para mudar sua situação.

Em seus primeiros escritos, ao menos em duas ocasiões, Marx discute a posição das mulheres na sociedade capitalista. Em A sagrada família, ele critica o comentário moralista de Eugène Sue sobre a prostituta parisiense fictícia Flor de Maria em Les Mystères de Paris [Os mistérios de Paris]. Nesse romance, Flor de Maria é “salva” da pobreza e da sua vida como prostituta por um príncipe alemão de pouca relevância. Ele a confia aos cuidados de uma religiosa e de um sacerdote, os quais a ensinam sobre a imoralidade de seu comportamento. Por fim, ela entra em um convento e morre logo depois.

Aqui, Marx critica Sue por sua aceitação acrítica do ensino social católico, que se concentra em uma forma abstrata de moralidade que nunca pode realmente ser alcançada. Os seres humanos não são apenas seres espirituais que podem ignorar suas necessidades corporais. Isso era particularmente relevante para alguém como Flor de Maria, uma vez que, como Marx observa, ela não tinha opções disponíveis para se sustentar, a não ser a prostituição. No entanto, o padre mostrou a Maria sua degeneração moral e contou-lhe da culpa que ela deveria sentir, apesar de não ter tido escolha real no assunto. Assim, nesse texto, Marx mostra uma grande simpatia pela difícil situação das mulheres da classe trabalhadora. Além disso, ele critica a unilateralidade do cristianismo, que busca elevar a posição de uma forma pura da mente contra uma forma pura do corpo.

Marx, no entanto, não limitou sua crítica da situação concreta das mulheres sob o capitalismo à classe trabalhadora. Em seu ensaio/tradução de 1846 referente ao trabalho de Peuchet sobre o suicídio, ele aponta para a opressão familiar nas classes altas.8 Três dos quatro casos que Marx discute envolvem suicídio feminino devido à opressão familiar. Em um caso, uma mulher casada cometeu suicídio, pelo menos em parte, porque seu marido ciumento a confinou em casa e foi abusivo sexual e fisicamente. O segundo caso envolveu uma noiva que passou a noite na casa do noivo. Depois que ela voltou para casa, seus pais a humilharam publicamente, e mais tarde ela se afogou. O último caso envolveu a incapacidade de uma jovem de fazer um aborto após um caso com o marido da sua tia.

Em dois dos casos, Marx mostra grande simpatia pela difícil situação dessas mulheres, enfatizando certas passagens de Peuchet e adicionando sutilmente suas próprias observações. Além disso, Marx aponta para a necessidade de uma transformação total da família burguesa, dando ênfase ao seguinte trecho de Peuchet: “A revolução não derrubou todas as tiranias. O mal que se atribui a forças arbitrárias existe nas famílias, nas quais provoca crises, análogas às das revoluções”.9 Dessa forma, Marx aponta a família em sua forma burguesa como opressora, algo que deve ser mudado significativamente se quisermos alcançar uma sociedade melhor.

Marx e Engels voltaram a criticar a família burguesa no Manifesto comunista. Nele, argumentaram que a família, em sua forma burguesa, baseada principalmente na gestão e na transferência de propriedade, estava em estado de dissolução. As condições materiais que levaram a essa forma de família estavam desaparecendo entre os proletários, porque eles não tinham bens para dar aos filhos. Talvez tenham sido pequenos agricultores de subsistência um dia, mas isso não era mais possível, visto que a terra foi expropriada por vários meios e eles foram forçados a ir para as cidades e para as fábricas garantir seu sustento. Sem essa capacidade de transmitir bens aos filhos após a morte e de controlar a força de trabalho da família durante a vida, o poder do pai diminuiu significativamente, apontando na direção de uma forma diferente de família. No entanto, Marx e Engels, nesse ponto, não discutiram em detalhes o que viria potencialmente após a dissolução dessa forma de família.

Embora O capital seja dedicado à crítica da economia política, há uma quantidade significativa de material sobre gênero e família. Nele, Marx retorna e concretiza o que descreveu como a abolição [Aufhebung] da família no Manifesto comunista. À medida que as máquinas são introduzidas nas fábricas, demandando trabalho menos exigente fisicamente, mulheres e crianças também se tornam categorias importantes de trabalhadores. O capital considera esses trabalhadores particularmente valiosos, uma vez que são de um grupo oprimido que pode ser compelido a trabalhar por menos.

Várias outras passagens em O capital ilustram que Marx tinha uma visão sobre a posição das mulheres na força de trabalho muito mais rica em nuances do que a maioria das feministas reconhece. Por exemplo, segundo ele, quando as mulheres entraram na força de trabalho, elas potencialmente ganharam poder em suas vidas privadas, uma vez que agora contribuíam monetariamente para o bem-estar da família e não estavam mais sob o controle direto de seus maridos ou pais durante grande parte do dia. Isso teve um efeito significativo na família. Aqui, Marx mostra os dois lados desse desenvolvimento. Por um lado, as longas horas e o trabalho noturno tendiam a minar as estruturas familiares tradicionais, já que as mulheres eram, em certa medida, “masculinizadas” por seu trabalho e, muitas vezes, eram incapazes de cuidar de seus filhos da mesma forma que o faziam no passado. Por outro lado, em uma passagem posterior, Marx observa que essa aparente “deterioração de caráter” levou à direção oposta — rumo a “uma forma superior de família”, em que as mulheres seriam verdadeiramente iguais aos homens.10

Embora a discussão de Marx sobre a opressão das mulheres trabalhadoras tenha sido um pouco limitada, em O capital — Livro I, bem como em seu material de rascunho anterior, ele oferece uma forte crítica do conceito de trabalho produtivo sob o capitalismo. Aqui, ele faz uma forte distinção entre o conceito de trabalho produtivo sob o capitalismo e o conceito de trabalho produtivo como tal. O primeiro é uma compreensão unilateral da produtividade, em que o único fator relevante é a produção de mais-valia para o capitalista. No entanto, o segundo conceito de trabalho produtivo concentra-se na produção de valores de uso. Nesse caso, o trabalho é valorizado como tal se produz algo que pode ser usado por indivíduos ou pela sociedade em geral. Isso fornece pelo menos alguma base para reavaliar o trabalho tradicional das mulheres, embora Marx tenha discutido muito pouco sobre isso.

Os escritos políticos de Marx ilustram uma certa evolução ao longo do tempo. Os seus conhecimentos teóricos são frequentemente incorporados em suas atividades políticas. Alguns de seus primeiros escritos políticos sobre as greves em Preston, na Inglaterra, em 1853–1854, oferecem uma avaliação relativamente acrítica da demanda dos trabalhadores por um salário familiar para os homens. Embora Marx nunca tenha repudiado diretamente esse tipo de argumento, suas posições posteriores parecem ter mudado, uma vez que ele trabalhou, na década de 1860, para incorporar as mulheres à Primeira Internacional em igualdade de condições com os homens.

O trabalho posterior de Marx ilustra uma apreciação adicional das demandas das mulheres trabalhadoras durante e após a Comuna de Paris. Isso é especialmente evidente no Programa do Partido Operário Francês de 1880, co-escrito por Marx, Paul Lafargue e Jules Guesde. O preâmbulo, escrito exclusivamente por Marx, afirma “que a emancipação da classe produtiva é a de todos os seres humanos, sem distinção de sexo ou raça”.11 Essa foi uma afirmação particularmente forte na França, onde a tradição proudhonista, um tanto sexista, predominava entre os socialistas.

Em seus escritos para o New York Tribune em 1858, Marx voltou à sua discussão da posição das mulheres de classe alta na sociedade capitalista. Em dois artigos para o Tribune, ele relata o confinamento de uma mulher aristocrata em um asilo a fim de silenciá-la e impedi-la de envergonhar ainda mais seu marido politicamente influente. Aqui, Marx critica todos os envolvidos no confinamento de Lady Bulwer-Lytton, argumentando que ela estava longe de ser louca. Embora Marx não discuta as formas pelas quais as mulheres em particular são, de maneira frequente, confinadas falsamente como meio de controle, ele observa a facilidade com que as pessoas podem ser confinadas, independentemente de seu estado psicológico real, se aqueles que solicitam o confinamento são ricos e poderosos o suficiente para induzir os profissionais médicos a darem as suas assinaturas. Além disso, ele mostra muita simpatia por Lady Bulwer-Lytton, que foi efetivamente silenciada devido a um acordo, pelo qual ela só conseguiu recuperar sua liberdade ao concordar em nunca mais discutir o incidente.

Os últimos anos de Marx, de 1879 a 1883, estão entre os períodos mais teoricamente interessantes da sua vida, principalmente no que diz respeito ao gênero e à família. Em seus cadernos de pesquisa, assim como em suas cartas e seus escritos publicados, ele começou a articular um modelo menos determinista de desenvolvimento social, em que sociedades menos desenvolvidas poderiam ser as primeiras a realizar revoluções, desde que fossem seguidas por revoluções em estados mais avançados. Marx incorporou novos sujeitos históricos em sua teoria. Não era apenas a classe trabalhadora como entidade abstrata que era capaz de revolução. Os camponeses — e principalmente as mulheres — também se tornaram forças importantes para a mudança na teoria de Marx. Esses cadernos dão algumas indicações, ainda que fragmentadas, de como ele via as mulheres como sujeitos do processo histórico.

As notas de Marx sobre Morgan são particularmente importantes, uma vez que fornecem uma comparação direta com a obra de Engels A origem da família — a qual o próprio autor afirmou ser uma representação relativamente próxima da leitura de Marx sobre A sociedade antiga, de Morgan. Porém existem diferenças significativas. As mais importantes são a compreensão menos determinista de Marx sobre o desenvolvimento social e seu entendimento mais dialético sobre a contradição dentro dos clãs relativamente igualitários.

Engels tendia a se concentrar quase única e unilateralmente nas mudanças econômicas e tecnológicas como fatores de desenvolvimento social. Marx, ao contrário, adotou uma abordagem mais dialética, em que a organização social não seria apenas um fator subjetivo, mas, na situação certa, poderia se tornar também objetivo. Isso é particularmente relevante para compreender as diferenças entre Marx e Engels quanto à opressão de gênero. Engels argumentou que o desenvolvimento da tecnologia agrícola, da propriedade privada e as mudanças subsequentes nos clãs, passando de direito da mãe para direito do pai, levaram à “derrota histórica mundial do sexo feminino”, em que as mulheres permaneceriam em uma condição de subjugação até a destruição da propriedade privada. Em contraste, Marx não apenas observou a posição subordinada das mulheres, mas também apontou para o potencial de mudança, mesmo sob a propriedade privada, com sua discussão sobre as deusas gregas. Embora a sociedade grega antiga fosse bastante opressora para as mulheres, confinando-as em sua própria seção da casa, Marx argumentou que as deusas gregas potencialmente forneciam um modelo alternativo para as mulheres. Ele também mostrou nessas notas o progresso das mulheres romanas da classe alta, em contraste com as gregas. Além disso, Marx tendia a adotar uma abordagem mais rica em nuances e dialética do desenvolvimento de contradições nessas primeiras sociedades igualitárias. Engels inclinava-se a ver as sociedades comunais relativamente igualitárias como carentes de contradições significativas, especialmente no que diz respeito às relações de gênero.12 Marx, no entanto, apontou para as limitações dos direitos das mulheres na sociedade iroquesa de base comunal.

A origem da família, de Engels, discute apenas as notas de Marx sobre A sociedade antiga, de Morgan, mas os cadernos de Marx sobre etnologia abrangem uma série de outras fontes. Suas anotações sobre Lectures on the Early History of Institutions [Palestras sobre a história das instituições], de Henry Sumner Maine, e Römische Alterthümer [Roma antiga], de Ludwig Lange, oferecem discussões significativas de gênero e família também nas sociedades pré-capitalistas — particularmente na Irlanda, na Índia e em Roma.13 Em suas notas sobre os dois autores, Marx parece ter se apropriado muito da teoria de Morgan sobre o desenvolvimento do clã. Enquanto as notas de Marx sobre Maine tendem a ser muito mais críticas do que aquelas sobre Lange, em ambos os casos Marx critica a aceitação acrítica desses dois autores da família patriarcal como a primeira forma.

Isso é particularmente importante, porque tende a apontar na direção de uma compreensão histórica da família. Nelas, assim como nas notas sobre Morgan, Marx mapeia as contradições presentes em cada forma de família e como essas contradições se acentuam, levando a mudanças significativas na estrutura da família. Aqui, Marx parece ver a família como sujeita a uma dialética semelhante a de outras áreas da sociedade.

Avaliando o Trabalho de Marx sobre Gênero e Família para a Atualidade

Historicamente, a relação do marxismo com o feminismo tem sido, na melhor das hipóteses, tênue, muitas vezes devido à falta de discussão por parte de muitos marxistas sobre gênero e questões tradicionais das mulheres. Além disso, mesmo em estudos nos quais o gênero e a família foram abordados, eles tendem a seguir o argumento de Engels, mais pobre em nuances e orientado economicamente. No entanto, acho que o trabalho de Marx sobre gênero e família exibe diferenças significativas em relação aos de Engels. Questões importantes sobre o possível valor das visões de Marx sobre gênero e família persistem: o que Marx tem a oferecer aos debates feministas contemporâneos? Existe a possibilidade de um feminismo marxista que não caia no determinismo econômico ou privilegie a classe sobre o gênero na análise da sociedade capitalista contemporânea?

Certamente, o relato de Marx sobre gênero e família ocasionalmente evidenciava sinais de moralidade vitoriana; entretanto, como argumentei, essa não é necessariamente uma falha fatal em seu trabalho. Há uma série de áreas nas quais a teoria da sociedade de Marx fornece a possibilidade de incorporar percepções feministas ao marxismo para estabelecer uma teoria unitária de opressão de gênero e classe, que também não privilegia fundamentalmente nenhum dos dois.

Um dos aspectos mais importantes do trabalho de Marx para a compreensão do gênero e da família é o seu método dialético. As categorias de Marx vieram de sua análise do mundo empírico, visto como dinâmico, e são baseadas em relações sociais ao invés de formulações a-históricas estáticas. Assim, essas categorias podem mudar à medida que a sociedade muda.

Isso seria potencialmente útil para uma análise feminista. Marx nunca abordou diretamente dualismos e categorias de gênero, mas ele deixa algum espaço em sua teoria para mudanças dentro dessas categorias. Isso é particularmente verdadeiro em relação aos dualismos natureza/cultura e produção/reprodução. Em ambos os casos, Marx aponta para a natureza histórica e transitória dessas formulações. Natureza e cultura não são opostos absolutos: são, em vez disso, momentos do todo. O trabalho, como uma atividade necessária para a sobrevivência, media a relação da humanidade com a natureza de maneiras muito específicas, com base no modo de produção específico em questão. Além disso, em termos do dualismo produção/reprodução, Marx normalmente toma o cuidado de observar que ambos são necessários à humanidade, mas assumirão diferentes formas com base no desenvolvimento tecnológico e social da sociedade em questão.

Marx aponta para dois aspectos diferentes dessas categorias: os elementos historicamente específicos e as características mais abstratas que existem em todas as sociedades. Assim, em termos de compreensão da relação das mulheres com esses dualismos, uma formulação lógica dentro do pensamento de Marx seria apontar que a biologia é certamente relevante. No entanto, a biologia não pode ser vista como tal fora das relações sociais de uma determinada sociedade. Isso pode potencialmente ajudar a evitar os argumentos biologistas e deterministas de algumas feministas radicais e socialistas que essencializam a “natureza das mulheres”, ao mesmo tempo que evita o relativismo, uma vez que, na visão de Marx, o mundo não é completamente construído socialmente. Ao invés disso, a biologia e a natureza são variáveis importantes quando vistas dentro de uma estrutura mediada socialmente.

Isso é importante por outro motivo. Embora a teoria de Marx permaneça subdesenvolvida em termos de fornecer uma explicação que inclua o gênero como importante para a compreensão do capitalismo, suas categorias, no entanto, apontam na direção de uma crítica sistemática do patriarcado conforme ele se manifesta no capitalismo, uma vez que Marx é capaz de separar os elementos do patriarcado historicamente específicos de uma forma mais geral de opressão das mulheres, como existiu ao longo de grande parte da história humana. Nesse sentido, suas categorias fornecem recursos para a teoria feminista, ou pelo menos áreas para novos diálogos, em um momento em que a crítica de Marx ao capital está voltando ao primeiro plano.

Com seu foco na mediação social e sua ênfase na compreensão de sistemas sociais particulares, Marx, como os estudos contemporâneos demonstraram, evitou o determinismo econômico. Certamente, os fatores econômicos desempenham um papel muito significativo em seu pensamento, pois são vistos como condicionantes de outros comportamentos sociais, principalmente no capitalismo. No entanto, Marx frequentemente tomava o cuidado de observar a relação dialética recíproca entre fatores econômicos e sociais. Como era o caso com a natureza e a cultura, bem como com a produção e a reprodução, as atividades econômica e social são momentos dialéticos do todo em um determinado modo de produção. Em última análise, os dois não podem ser separados completamente, como Marx ilustrou em seu ensaio “Suicídio” e em artigos do New York Tribune, nos quais ele aponta para as maneiras únicas em que a economia e a forma especificamente capitalista de patriarcado interagem para oprimir as mulheres. Assim, nesses e em seus outros escritos, Marx, ainda que de forma incipiente, começou a discutir a relação de interdependência entre classe e gênero, sem privilegiar fundamentalmente nenhum dos dois em sua análise.

Apesar do fato de que nem todos os aspectos dos escritos de Marx sobre gênero e família são relevantes hoje — já que alguns carregam as limitações do pensamento do século XIX –, eles oferecem percepções importantes sobre gênero e pensamento político. Embora Marx não tenha escrito muito sobre gênero e não tenha desenvolvido uma teoria sistemática de gênero e família, essa era, para ele, uma categoria essencial para a compreensão da divisão do trabalho, da produção e da sociedade em geral. A sua discussão sobre gênero e família estendeu-se muito além de simplesmente incluir as mulheres como operárias de fábrica. Marx notou a persistência da opressão na família burguesa e a necessidade de desenvolver uma nova forma de família. Além disso, ele tornou-se cada vez mais solidário às demandas das mulheres por igualdade no local de trabalho, nos sindicatos, na Primeira Internacional, e enquanto estudava o capitalismo e testemunhava o papel das mulheres em eventos importantes, como a Comuna de Paris de 1871. Apesar do caráter rústico e fragmentado, as notas de Marx sobre etnologia são particularmente significativas, uma vez que ele aponta diretamente para o caráter histórico da família por meio de suas seleções de Morgan, Maine e Lange. Além disso, o uso da dialética por Marx é uma importante contribuição metodológica para o feminismo e a pesquisa social em geral, parecendo ver o gênero como sujeito a mudanças e desenvolvimento, ao invés de um conceito estático.

Notas

  1. Ver Georg Lukács, História e Consciência de Classe. Cambridge, MA: The MIT Press 1971 — originalmente 1923; e Terrell Carver, Marx & Engels, The Intellectual Relationship. Bloomington: Indiana University Press, 1983.
  2. Raya Dunayevskaya, Rosa Luxemburg, Women’s Liberation, and Marx’s Philosophy of Revolution. Chicago: University of Illinois Press, 1991 — originalmente 1981.
  3. Heidi Hartmann, “The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism: Towards a More Progressive Union”, em Linda Nicholson (ed.), The Second Wave: A Reader in Feminist Theory. Nova York: Routledge, 1997 — originalmente 1981; Nancy Hartsock, Money, Sex, and Power: Toward A Feminist Historical Materialism. Londres: Longman, 1983.
  4. Margaret Benston, “The Political Economy of Women’s Liberation”, Monthly Review, v. 21, n. 4, p. 13–27, 1969; Mariarosa Dalla Costa e Selma James, The Power of Women and the Subversion of the Community. Brooklyn: Petroleuse Press, 1971; Silvia Federici, Wages Against Housework. Bristol: Falling Wall Press, 1975; Wally Seccombe, “The Housewife and Her Labour under Capitalism”, New Left Review I, n. 83, p. 3–24, 1974.
  5. Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. New Brunswick: Rutgers University Press, 1983.
  6. Nancy Holmstrom, “A Marxist Theory of Women’s Nature”, Ethics, v. 94, n. 3, p. 456–73, 1984.
  7. Iris Young, “Socialist Feminism and the Limits of Dual Systems Theory”, Socialist Review, v. 10, n. 2–3, p. 169–88, 1980.
  8. Karl Marx, “Sobre o suicídio”, em Eric Plaut e Kevin Anderson (eds.), Marx on Suicide. Evanston: Northwestern University Press, 1999 — originalmente 1846.
  9. Ibidem, p. 51.
  10. Karl Marx, O capital, v. I. Nova York: Penguin Books, 1976 — originalmente 1867–75, p. 621.
  11. Karl Marx em David Fernbach (org.), The First International and After, Political Writings, v. 3. Londres: Penguin Books, 1992, p. 376.
  12. Isso é elaborado em Heather Brown, Marx on Gender and the Family: A Critical Study. Chicago: Haymarket Books, 2013, capítulo 5.
  13. As notas sobre Maine estão disponíveis em Karl Marx (Lawrence Krader, ed.), The Ethnological Notebooks of Karl Marx (Studies of Morgan, Phear, Maine, Lubbock). Assen, Holanda: Van Gorcum & Co., 1972. Notas de Marx em Lange não foram publicadas. Traduções em inglês foram gentilmente fornecidas à autora por aqueles que trabalham com o projeto MEGA.

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