Marx e a Escravidão: Parte 3

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9 min readOct 5, 2021

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Por Jonh Bellamy Foster, Hannah Holleman, e Brett Clark. Texto publicado em 01 de julho de 2020 em Monthly Review.

Traduzido por Lucas Chagas. Revisado por Débora Cunha e Rebecca Borges.

Marx, a Guerra Civil dos Estados Unidos e a Reconstrução Negra

Como Robin Blackburn observou na obra Uma revolução inacabada: Karl Marx e Abraham Lincoln [An Unfinished Revolution: Karl Marx and Abraham Lincoln], Marx, na época da Guerra Civil dos Estados Unidos, “estava focado em destruir a verdadeira escravidão, que ele sabia ser um componente crítico da ordem capitalista reinante”. Ele via o conflito entre o Norte e o Sul na época da Guerra Civil dos Estados Unidos como uma competição entre “duas espécies de capitalismo — uma permitindo a escravidão e a outra não.”76 Marx desempenhou um papel fundamental na organização do movimento da classe trabalhadora inglesa contra a movimentação do governo britânico para intervir pelos Confederados na Guerra Civil dos Estados Unidos. Sua participação na luta contra a escravidão foi, portanto, totalmente integrada à sua crítica geral da economia política. Os extensos manuscritos econômicos que formariam a base de O Capital foram escritos durante os anos da Guerra Civil dos Estados Unidos. Marx iniciou a redação do manuscrito do volume um de O Capital assim que a escravidão foi derrotada.77

As numerosas análises de Marx sobre a escravidão e a Guerra Civil dos Estados Unidos foram únicas ao ver essa guerra como uma luta revolucionária que só poderia ser vencida por meios revolucionários, incluindo a libertação dos escravos e o início de uma “guerra popular” contra o poder escravagista. De acordo com Tom Jeannot em “Marx, Capitalism, and Race”,

Antecipando o “conflito irreprimível” (com William Seward), a trilha que Marx abriu leva da “guerra do Kansas” (1854–1856) ao ataque em Harper’s Ferry (outubro de 1859), à revolta Negra em Bolívar, Missouri (Dezembro de 1859)… Contra a tentação permanente de banalizar ou ignorar a atividade dos próprios escravos negros, ou então apresentá-los como espectadores passivos no processo de sua própria emancipação, Marx previu, em um evento obscuro e pouco notado no Missouri antes do início da guerra, a chave para o curso futuro dos eventos mundiais. Assim que a guerra começou, ele escreveu a Engels: “Um único regimento negro teria um efeito notável nos nervos do sul” (agosto de 1862)… Na mesma carta a Engels citada acima [7 de agosto de 1862], Marx retorna a um ponto relacionado que governa seu pensamento sobre o progresso e o resultado da Guerra Civil como um todo: “O resumo da história me parece ser que uma guerra desse tipo deve ser conduzida de em termos revolucionários.”78

Marx não apenas escreveu sobre a guerra contra a escravidão, mas também se envolveu diretamente na luta política. Embora a Guerra Civil dos Estados Unidos tenha coincidido com o intenso período em que ele escreveu o esboço do Manuscrito Econômico de 1861–1863 e o Manuscrito Econômico de 1864–1865, antes de redigir O Capital, volume um, como Du Bois enfatizou em “Karl Marx e o Negro” [Karl Marx and the Negro], Marx desempenhou um papel na organização das “reuniões de massa monstruosas” do final de 1862 e 1863 com o objetivo de impedir a intervenção da Grã-Bretanha em nome do sul escravagista. Em 26 de março de 1863, a maior e mais influente reunião de trabalhadores britânicos foi realizada em apoio às forças da União na Guerra Civil dos Estados Unidos. A reunião lotou a sala de concertos James Hall em Londres com até três mil trabalhadores presentes. Henry Adams, que compareceu à reunião no lugar de seu pai Charles Francis Adams, o embaixador dos EUA, deu crédito a Marx e a Edward Beesly, um importante positivista, professor de história e mais tarde simpatizante da Associação Internacional dos Trabalhadores, pela organização da reunião. O orador principal foi John Bright, um quacre, livre-negociante e proprietário de um moinho, que era um fervoroso oponente da escravidão e tinha considerável admiração pelos artigos de Marx no New York Tribune, e por quem Marx tinha algum respeito como orador e pensador. Este e outros protestos massivos da classe trabalhadora foram creditados por Marx, Charles Francis Adams e a muitos outros por terem colocado um fim aos planos do governo britânico de ir à guerra.79

A organização política dos trabalhadores britânicos na luta contra a escravidão levou ao desenvolvimento da Associação Internacional dos Trabalhadores, sob a liderança de Marx. Em seu “Discurso de posse” na Primeira Internacional em setembro de 1864, Marx anunciou a solidariedade internacional da classe trabalhadora na Inglaterra aos trabalhadores escravos no Sul dos EUA e ao Norte na Guerra Civil. Ele apontou que, apesar da crise do algodão proveniente da guerra, os trabalhadores haviam se aliado, contra seus próprios interesses diretos, à luta antiescravagista e, assim, “salvaram o oeste da Europa de mergulhar de cabeça em uma cruzada infame para a perpetuação e propagação de escravidão no outro lado do Atlântico.”80 Em novembro de 1864, Marx redigiu a famosa carta da Primeira Internacional a Abraham Lincoln, parabenizando-o por sua reeleição e pela “luta incomparável pelo resgate de uma raça acorrentada e pela reconstrução de um mundo social”, colocando um ponto final à tentativa cínica da Confederação de manter “a escravidão como ‘uma instituição beneficente’, na verdade, a única solução para o grande problema da ‘relação do trabalho com o capital’”. Lincoln respondeu favoravelmente, através de Charles Francis Adams, em uma carta que causou polêmica na imprensa britânica.81

Em maio de 1865, após o assassinato de Lincoln e a chegada de Andrew Johnson à presidência, Marx redigiu uma carta da International a Johnson, referindo-se à derrota do “demônio da ‘instituição peculiar’”, à “árdua tarefa de reconstrução política”, e à “emancipação do trabalho”.82 Em outubro de 1865, isso foi seguido por uma carta da Primeira Internacional assinada por Marx e outros e dirigida ao povo dos Estados Unidos, que, na opinião de Du Bois, representava a profunda preocupação de Marx com a Reconstrução, e lançou um grave aviso: “Declare seus concidadãos [ex-escravos] de hoje em diante livres e iguais, sem reservas” ou “uma nova luta… mais uma vez encharcará seu país de sangue.”83 Marx, entretanto, logo percebeu os perigos reacionários que Johnson representava à Reconstrução. Como explica Du Bois, Marx “apoiou a democracia abolicionista liderada por [Charles] Sumner e [Thaddeus] Stevens”. Marx, seguindo o radical republicano Benjamin Franklin Wade, declarou que “a abolição da escravidão” exigia “uma mudança radical na relação entre capital e a propriedade da terra” nos antigos estados escravagistas. No entanto, “a reação”, escreveu ele a Engels em 1865, “já começou na América”.84

Diante dessas tendências reacionárias, Marx buscou continuamente forças objetivas que unissem os trabalhadores negros e brancos. Em uma declaração merecidamente famosa em O Capital em 1867, Marx evocou a necessidade de uma ampla aliança trabalhista transcendendo a raça, agora possível com a emancipação dos escravos: “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro… Uma nova vida surgiu imediatamente com a morte da escravidão.” Ele ainda ansiava por “uma transformação radical nas relações existentes entre capital e propriedade da terra” no Sul durante a Reconstrução.85 Uma década depois, perturbado pelo fim da Reconstrução, junto ao poder do capital ferroviário, Marx ainda assim escreveu a Engels em 1877 sobre a possibilidade de uma ampla aliança pretos/brancos, camponeses/trabalhadores industriais: “A política do novo presidente [Rutherford B. Hayes] usará os negros, assim como as grandes expropriações de terras (PRECISAMENTE DAS TERRAS FÉRTEIS) para o benefício das FERROVIAS, MINERAÇÃO, etc. empresas transformarão os camponeses do oeste — cujos resmungos já são claramente audíveis — em aliados militantes dos trabalhadores [industriais]. Portanto, há uma bela tempestade se formando ali.”86

No entanto, Marx não conseguiu mais abordar os novos desenvolvimentos com respeito ao capitalismo racial nos Estados Unidos associados ao Jim Crow. Assim, Du Bois escreveu:

Foi uma grande perda para os negros americanos que a grande mente de Marx e sua extraordinária visão das condições industriais não puderam ser aplicadas em primeira mão à história do negro americano entre 1876 e a Primeira Guerra Mundial. Tudo o que ele disse e fez a respeito da elevação da classe trabalhadora deve, portanto, ser modificado no que diz respeito aos negros, pelo fato de ele não ter estudado em primeira mão o seu problema racial peculiar aqui na América. No entanto, ele conhecia a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, França e Alemanha, e os negros americanos devem entender qual a panacéia que ele pensou para essas pessoas, se quiserem enxergar claramente seu caminho rumo ao futuro.87

A “panaceia” era, claro, o socialismo, que Du Bois, junto com Marx, acreditava ser uma parte necessária da resposta às opressões de raça e classe.

O rosto velado

Tanto Marx quanto Du Bois eram fascinados pela Ísis e pelas imagens do pedestal e do véu. Marx via a Ísis velada claramente como uma deusa africana, com a realidade histórica do comércio de escravos e a luta interminável pela liberdade humana revelada no levantamento do seu véu. Para Du Bois, em “The Damnation of Women” [A condenação das mulheres], na obra Darkwater, “Ísis, a mãe, ainda é a deusa titular, em pensamento, se não no nome, do continente escuro”, cujo rosto velado está bem acima de seu pedestal.88 Em seu poema “Filhos da Lua” [“Children of the Moon], que acompanha o capítulo sobre “A Condenação das Mulheres”, a Ísis africana velada representava “o caminho construído pelo sangue”, a luta pela liberdade negra em meio aos horrores da escravidão:

Pra cima! Pra cima! O caminho feito de sangue;
(A sombra fica mais vasta!
O terror se aproxima mais rapidamente!)
Pra cima! Pra cima! para a escuridão escaldante
De um rosto sob o véu…
Eu subi na montanha da lua
Eu senti a glória resplandecente do Sol;
Eu ouvi a Canção das Crianças gritando: “Livre!”
Eu vi o Rosto da Liberdade -
E morri.89

Tanto para Du Bois como para Marx, o segredo da Ísis era a luta pela liberdade para além da escravidão, para além da “condenação das mulheres”, para além do trabalho assalariado, para além do capitalismo racial — uma luta tão grande que exigia uma revolução permanente.

Notas

76. Blackburn, An Unfinished Revolution, 11–12; Patterson, “On Slavery and Slave Formations,” 53–54.
77. É por esta razão que as análises mais profundas de Marx da economia da escravidão ocorrem nos Grundrisse, no Manuscrito Econômico de 1861–1863 e nas partes do Manuscrito Econômico de 1863–1865 que constituíram os rascunhos para o segundo e terceiro volumes de Capital. Quando Marx começou a redigir O Capital, vol. 1, o sistema escravista dos EUA estava no passado, embora tenha sido sucedido por novas formas de capitalismo racial. A questão em 1867, como Marx deixou claro no prefácio de O Capital, vol. 1, foi a Reconstrução. Ver Marx, Capital, vol. 1, 93.
78. Tom Jeannot, “Marx, Capitalism, and Race,” Radical Philosophy Today 5 (2007): 72; Marx e Engels, The U.S. Civil War, 17, 22–23, 121. Translation here follows Du Bois, Black Reconstruction, 354.
79. Foner, British Labor and the American Civil War, 11–13, 39–40, 57–62, 84–85; John Spargo, Karl Marx: His Life and Work (Nova Iorque: B. W. Huebsch, 1912), 224–25; Ephraim Douglass Adams, Great Britain and the American Civil War, vol. 2 (Nova Iorque: Longmans, Green and Co., 1925), 291–92; John Nichols, The “S” Word (Londres: Verso, 2011), 61–99; Kevin B. Anderson, Marx at the Margins (Chicago: University of Chicago Press, 2016), 106–114. Ver também John Bright, Speeches on the American Question (Boston: Little Brown and Co., 1865), 170–93. Embora Marx se opusesse fortemente a muitos aspectos das visões de Bright, ele o via como um corte acima dos pensadores burgueses usuais e examinou seu trabalho de perto, pegando trechos em seus cadernos Karl Marx e Friedrich Engels, Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA), IV / 18 (Berlim: Walter de Gruyter, 2019), 6–7.
80. Marx e Engels, The Civil War in the United States, 179–82
81. Marx e Engels, The Civil War in the United States, 153–57.
82. Marx e Engels, The Civil War in the United States, 165–66.
83. Marx e Engels, The Civil War in the United States, 186–87; Du Bois, “Karl Marx and the Negro,” 218; Du Bois, Black Reconstruction, 354.
84. Marx, O Capital, vol. 1, 93; Du Bois, “Karl Marx and the Negro,” 219; Marx e Engels, The Civil War in the United States, 167.
85. Marx, O Capital, vol. 1, 93, 414.
86. Marx e Engels, The Civil War in the United States, 189; Du Bois, “Karl Marx and the Negro,” 219.
87. Du Bois, “Karl Marx and the Negro,” 219.
88. E. B. Du Bois, Darkwater: Voices from within the Veil (1920; repr. Mineola: Dover, 1999), 97; ver também, Wilson J. Moses, “The Poetics of Ethiopianism: W. E. B. Du Bois and Literary Black Nationalism,” American Literature 47, no. 3 (1975): 418–23.
89. Du Bois, Darkwater, 113.

Sobre os Autores

John Bellamy Foster é editor da Monthly Review e professor de sociologia na Universidade de Oregon. Hannah Holleman é diretora da Monthly Review Foundation e professora associada de sociologia no Amherst College. Brett Clark é editor associado da Monthly Review e professor de sociologia da Universidade de Utah.

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