Magia, Necromancia e a Virada Não-Humana

Leia Marxistas
23 min readApr 5, 2022

--

Por SunYoung Ahn. Texto publicado em 1 de fevereiro de 2022 em Monthly Review.

Traduzido por Rebecca Borges. Revisado por Débora Cunha.

Mas não é o propósito do pensamento crítico colocar o objeto no trono real órfão, uma vez ocupado pelo sujeito. Nesse trono, o objeto não seria nada mais que um ídolo.

— Theodor Adorno, A Dialética negativa 1

Nas ciências humanas e sociais, atenção crítica está sendo dada ao não-humano como um problema ecológico, filosófico e político — o não-humano aqui significa qualquer coisa, do ar à água, dos átomos às células, dos animais e plantas aos objetos manufaturados. Sob nomes tão diversos como novo materialismo, ecologia política e ontologia orientada a objetos, estes estudos compreendem um movimento que é descrito em grande parte como a virada não-humana.2 Embora multidisciplinar e variada, a virada não-humana é impulsionada por um objetivo comum de erradicar o que é considerado um falso dualismo entre o humano e o não-humano e de arraigar a ética e a política de maneiras que possam dissolver um viés profundamente enraizado no pensamento humano: a noção de que tudo no mundo é um Outro que existe para dar legitimidade ao sujeito humano. Para contrariar esta percepção bastante arrogante e narcisista, uma nova ontologia do mundo é construída na qual a matéria não é inerte, uma coisa morta sobre a qual o humano exerce influência. Ao invés disso, ela possui sua própria agência, capaz de gerar movimento e moldar eventos.

Diana Coole e Samantha Frost, por exemplo, escrevem que o novo materialismo se distingue sobretudo pela afirmação de “poderes emergentes, generativos (ou capacidades agênticas)” da matéria. Ao estar atento à vida de todas as coisas, incluindo “forças, energias e intensidades… e processos complexos, mesmo aleatórios”, este novo materialismo imagina uma realidade criada através de combinações fortuitas de forças que nem sempre podem ser explicadas por inferências causais e análises sistemáticas. O argumento é que, no Ocidente, a filosofia do não-humano tem sido antropomórfica, para dizer o mínimo. Para retificar este hábito da mente centrada no ser humano e solipsista, os novos materialistas olham para a pesquisa científica contemporânea sobre a matéria e suas propriedades, o que, a seu ver, demonstra que a matéria não-humana tem uma existência complexa na qual não apenas é tratada passivamente pelo humano, mas também afeta ativa e intimamente os assuntos humanos. O que eles vêem como a importância desproporcional atribuída ao humano é, portanto, compensado pelo grande peso dado à presença não-humana e sua influência no mundo. Desta forma, o novo materialismo impõe uma epistemologia equalizadora ao identificar “um senso pós-humanista de agência material”, por um lado, e “uma limitação da eficácia agêntica do ser humano”, por outro. Como explica Graham Harman, um teórico da ontologia orientada a objetos, todos os objetos da experiência “são meras ficções”, ou seja, “modelos simplificados dos objetos muito mais complexos que continuam a existir quando eu deixo de olhar para deles e, ainda mais, quando durmo ou morro”. A ideia não é sugerir que existe um abismo intransponível que impede o humano de conhecer o mundo do objeto não-humano. A questão, ao contrário, é que o humano participa dos movimentos do mundo material, não como um agente no sentido tradicional, mas como sendo ele mesmo* um objeto em relações simbióticas com o não-humano. O humano não é o sujeito onisciente que compreende todos os parâmetros e funções da matéria no universo, mas é aquele que existe junto com a matéria em formas e movimentos que mudam perpetuamente.3

É empolgante imaginar que o mundo é um lugar onde a matéria tem uma “generatividade imanente” e que todos os seres e coisas têm relações horizontais e de influência mútua.4 Tais relações não hierárquicas ensinam o humano a ser humilde, inspirando respeito e atenção às qualidades únicas de todos os seres e coisas. No entanto, eu defendo que a atual extrapolação teórica da agência não-humana tem algumas limitações que minam seriamente sua potência ética e política. Há três aspectos que considero especialmente problemáticos sobre a atual onda de interesse crítico no não-humano, o primeiro dos quais é o fato de ser um mobilizador político ineficaz. Dito de forma simples, a preocupação com vetores aleatórios de força esvaziados de intenções e motivações torna impossível a formulação de planos políticos que possam realizar seus ideais sociais. O segundo problema com o novo materialismo é sua caricatura rebuscada do pensamento marxista — do materialismo histórico como uma tosca teoria da relação homem-natureza manchada pelo especismo e uma compreensão do não-humano como um recurso passivo à espera de ser utilizado pelos humanos. No entanto, os próprios termos novo materialismo e ecologia política têm precedentes no pensamento marxista, cuja influência não é mencionada. Finalmente, o estudo do não-humano envolve fetichização, atribuindo poder agencial mistificador a seres e coisas não-humanas, ofuscando os contextos sociais dos quais ele surge. Baseado no conceito de Karl Marx de fetichismo da mercadoria, sugiro que esta mistificação convenientemente ajude a transcender ou ignorar a atual natureza mercantilizada do não-humano.

A (não-)política da virada não-humana

Uma forma pela qual os estudos não-humanos tornam a própria possibilidade de ação política discutível decorre do argumento de que também o humano deve ser considerado como matéria, como sempre tendo sido um composto adulterado de vários elementos materiais. Ele não é, portanto, um animal político ou um ser com direitos inatos e dignidade a defender. Tampouco é um ser singularmente inteligente, distinguindo-se da natureza “burra”, passiva; ao contrário, o humano é uma parte de natureza dinâmica, imprevisível, maior do que a soma de suas partes. As crises causadas pelo aquecimento global são especialmente esclarecedoras a este respeito, pois demonstram que os humanos estão presentes na Terra não como seus senhores, mas como sendo eles mesmos seres naturais, nunca tendo certeza sobre os caminhos do planeta porque não têm um conhecimento completo do mundo. Como Dipesh Chakrabarty argumenta, os humanos são assim “agentes geológicos” e existem como “uma condição natural”, não apenas como seres históricos e políticos no sentido em que o discurso do Iluminismo os retrata. A história não é, portanto, um assunto exclusivamente humano, cuja época mais recente pode ser explicada com o termo global e analisada através de uma crítica ao capital. A história é, ao invés disso, planetária, necessitando de um pensamento das espécies que está “ligado ao empreendimento da história profunda”. O status ontológico da espécie humana não é, portanto, principalmente social, histórico ou político; ao contrário, é natural, devido à imersão e incorporação inescapável no mundo físico e sensorial.5

Os problemas com esta confusão entre o humano, o natural e o político são numerosos, começando pela sugestão enganosa de que a representação do humano como um grão no vasto continuum da vida planetária pode ser tomada como uma conquista ética e uma declaração política. Ou seja, o autoconhecimento adequado e o respeito pelo mundo mais que humano torna-se ipso facto um ato político. Isso sugere que enquanto os atores humanos dentro do sistema capitalista podem ter acelerado o aquecimento global, o quadro geral é a história planetária, na qual os seres humanos existem como uma força natural, não política. Aqui, o político e o natural são derretidos de forma a desfocar a seriedade de séculos de atividades capitalistas, com sua enorme efusão de dióxido de carbono, e isso também mitiga a importância de determinar precisamente como os processos de produção e reprodução afetam o meio ambiente.

A representação do não-humano como agencial obscurece o fato de que o mundo não-humano já está significativa e completamente afetado por processos de acumulação, distribuição e capitalização. Fatores econômicos e políticos são efetivamente apagados; o que resta é o mundo natural e suas operações giratórias de matéria que já constituem as relações horizontais e achatadas entre o humano e o não-humano. Como o humano e o não-humano já existem como conjuntos democráticos e de influência mútua, torna-se desnecessário pensar em como alavancar as ações políticas para alcançar os resultados desejados. Embora não explicitamente antipolíticos, os estudos não-humanos certamente promovem uma posição não-política: como argumentam Bonnie Washick e Elizabeth Wingrove, a ênfase na dimensão “sempre ’em processo’ da materialidade do mundo” não ajuda “a iluminar qualquer forma particular de ação… corresponde às relações cooperativas, conflituosas, agonísticas e/ou deliberativas associadas de forma variada ao engajamento político”. É certo que o novo argumento materialista é útil na medida em que estimula a “repensar ou rever tanto nós mesmos quanto nosso mundo”. No entanto, também pode produzir “uma política que não importa”, pois qualquer ação conjunta se reduz às “dependências sempre em rede pelas quais vivemos”. Assim, o novo materialismo tem uma tendência, como diz Andreas Malm, “a cair em um determinismo da mais simples variedade”, no qual qualquer tipo de “esforço é descartado como inútil”.6

A sensação de futilidade causada por esta drenagem de energia política também é bem ilustrada na forma como Coole e Frost definem a história, que para eles não é um processo deliberado, mas sim uma “transformação contínua de formas provisórias por eventos novos, indecifráveis e imprevistos, com a lição corolária de que a intervenção aleatória pode ser mais eficaz do que a compreensão paciente das trajetórias e o trabalho através de continuidades cuja lógica interna de desenvolvimento é presumida como duradoura”.7 Esta afirmação é problemática não por destacar a importância de encontros e interações fortuitas, pois muitas coisas no curso humano dos eventos realmente não acontecem como planejado. Ao contrário, o problema é o que vejo como um fatalismo que remove a confiança na eficácia das ações e planos humanos. Eu questiono se o que acontece com o humano e o não-humano pode realmente ser atribuído diretamente à “intervenção aleatória”, tornando nulo o processo de “compreensão paciente” e de “atuar ao longo dos processos”. Uma intervenção que é aleatória ainda é uma intervenção, afinal, e não pode ocorrer se não houver agentes humanos para causá-la. Intervenções não planejadas e improvisadas podem eventualmente produzir resultados mais positivos do que ações planejadas, mas é igualmente verdade que ações políticas programadas antecipadamente também levaram, e ainda levam, a resultados desejáveis. Assim, continua sendo significativo avaliar “trajetórias” e a “lógica interna do desenvolvimento”. Em uma passagem interessante, Jane Bennett introduz uma discussão sobre as minhocas para elucidar que, “em alguns momentos e lugares, a ‘pequena agência’ da minhoca humilde faz mais diferença do que a grande agência dos humanos”, permitindo o crescimento das árvores florestais, por exemplo.8 No entanto, seria necessário percorrer um longo caminho para sugerir que as minhocas afetam a política e a civilização humanas da mesma forma que os humanos o fazem, ou para confundir as atividades políticas humanas com as das minhocas. Fazer isso não necessariamente tornaria a política mais inclusiva e igualitária; ao contrário, mudaria o significado da política para incluir o trabalho das minhocas, colocando as ações humanas no mesmo nível que as das minhocas. Esta é uma abstração que não cria uma política democrática, mas sim uma não-política, na qual a necessidade de ação política e de assumir responsabilidades é minimizada.

Sou cética sobre se a incorporação da política ecológica desta forma, ou a confluência das duas, pode realmente enriquecer a teoria democrática, tampouco se pode nos inspirar a reorganizar nossas políticas democráticas. Fazer isso significa envolver-se no trabalho diário de confrontos, negociações, compromissos e decisões, nos quais os não-humanos não podem participar apenas com pura animação. Isto se torna mais claro se examinarmos as especulações de Bennett sobre como “matéria comestível”, como o ácido graxo ômega 3, pode agir uma vez que esteja dentro do corpo humano. Sugerindo que já foi dito o suficiente sobre os seres humanos que consomem os alimentos, Bennett inverte o foco ao examinar o que os alimentos poderiam fazer interativamente uma vez consumidos. Sua conclusão, citando trabalhos científicos, é que “um elemento particular” como ômega 3 “pode ser tão contingentemente bem colocado em uma configuração a ponto de seu poder de alterar a direção ou função do todo ser excepcionalmente grande”. Assim, o consumo de coisas como ômega 3 pode diminuir a violência entre pessoas encarceradas, melhorar as capacidades de aprendizagem e comportamento em crianças com dificuldades e mitigar sintomas de esquizofrenia. Isto não sugere necessariamente que haja “causalidade mecânica” na qual uma certa quantidade de matéria comestível resulta direta e transparentemente na criação de comportamentos, humores ou temperamentos específicos. A questão é que tirar o foco “de indivíduos e colocá-lo em atuantes em conjuntos” nos permite pensar em problemas como a obesidade não apenas em termos de “humanos grandes e suas próteses econômico-culturais”, mas também em termos de “esforços e trajetórias das gorduras à medida que elas enfraquecem ou aumentam o poder das vontades, hábitos e idéias humanas”. Se o ponto de vista cartesiano postula um dualismo mente-corpo para argumentar que a mente governa o corpo, novos materialistas iluminam como o corpo — especialmente seu funcionamento interno que é imperceptível para o olho humano — pode afetar a mente.9

A matéria dentro e fora de nosso corpo afeta claramente nosso humor, psicologia e comportamento. O clima, por exemplo, como sabemos através do bom senso, tem influência significativa no que fazemos e como nos sentimos e vivemos. No entanto, ao se tratar microscopicamente do funcionamento dos produtos químicos e partículas, sugerindo que eles têm tanto impacto quanto as “próteses econômico-culturais”, corre-se o risco de neutralizar os contextos sociais, que, de fato, determinam significativamente como a matéria funciona. Como argumentam Sebastian Abrahamsson, Filippo Bertoni, Annemarie Mol e Rebeca Ibáñez Martín, o fato de que a violência diminui quando os presos consomem gorduras ômega 3 significa mais do que o poder da matéria: ilumina que os presos podem estar desnutridos e fornece uma pista sobre o tipo de ambiente ao qual os presos estão sujeitos, pois uma medida clara do efeito do consumo de alimentos só é possível em circunstâncias nas quais a dieta e o comportamento são monitorados de perto em um ambiente disciplinar, com variáveis minimizadas.10

A importância de considerar o contexto maior e não apenas o status ontológico da matéria é ainda mais destacada quando pensamos em “mundos dos quais o ômega 3 é suprido”, como isso informa sobre a triste realidade de que, se a supressão de ômega 3 pelos peixes continuar, os oceanos logo se esgotarão, sem mencionar um alargamento das “desigualdades entre pessoas bem alimentadas e subnutridas”. Assim, a menos que seja acompanhado pela análise mais “tradicional” do sistema econômico globalizado e da dinâmica política, o novo materialismo se torna um exercício de meditação sem base substancial. As descobertas científicas são sua fonte de inspiração, que pode parecer fornecer um terreno com credibilidade a partir do qual a matéria pode ser pensada, mas como Marx e Friedrich Engels pediram: “onde estariam as ciências naturais sem a indústria e o comércio?” O conhecimento sobre ômega 3, por exemplo, não se torna disponível em um vácuo. Ele é descoberto no curso da atividade humana, do “incessante trabalho e criação sensorial”. Assim como o exemplo de Marx e Engels da cerejeira, a qual adquire “certeza sensorial” através das atividades comerciais humanas, ômega 3 também adquire certeza sensorial, não apenas através de sua materialidade, mas através da “ação de uma sociedade definida em uma idade definida”. Usando a imagem de Marx e Engels sobre os peixes de água doce e sua água poluída, pode-se dizer que o problema dos peixes aqui não pode ser resolvido reconhecendo a agência maravilhosa e vital dos peixes em abstração, mas entendendo os processos históricos pelos quais os peixes passaram a ser alienados de sua “essência”: água limpa e habitável.11

O Eclipse de Marx

Curiosamente, as abordagens dos estudos sobre o não-humano, embora diversas em suas origens e significados, compartilham a mesma tendência de tensão com o pensamento marxista. Elas não ignoram totalmente o legado marxista, pois não seria possível discutir o “novo” tipo de materialismo sem esclarecer sua relação com o “velho”. No entanto, embora reconheçam o legado, eles também o descaracterizam, descrevendo-o como demasiadamente rígido e centrado no ser humano para dar espaço para pensar as peculiaridades e contingências criadas pelo não-humano. O marxismo deve ser especialmente cauteloso, Coole e Frost escrevem, para que ele não “avance uma metanarrativa histórica, aspire à identificação de leis econômicas determinantes, valorize uma natureza primitiva e originária, ou considere o comunismo como o destino material idealizado pela história”. Em declarações posteriores que criam mais confusão do que esclarecimento, afirmam que, em contraste com as supostas deficiências do antigo materialismo, o novo materialismo está associado a “atenção renovada às causas e efeitos densos da economia política global e, portanto, a questões de justiça social para os indivíduos corporificados”. As análises sociais do tipo oferecido por Louis Althusser e Michel Foucault são “munição para o materialista crítico” porque o conscientizam de que “tais densas redes de relacionamentos reforçam estruturas socioeconômicas que sustentam os privilégios e interesses de uns e não de outros, que essas vantagens não são distribuídas de forma aleatória, muito menos justa, e que a compreensão de como elas operam e são mantidas é uma tarefa crucial”.12

Cito isso ao pé da letra para mostrar que o marxismo, na verdade, se dedica precisamente às tarefas que o novo materialismo afirma estar empreendendo recentemente. Além disso, ele ousa detectar um padrão e sistema reconhecíveis entre “densas redes de relacionamentos” e exige que os agentes humanos que colocam em prática seus planos e visões compartilhadas mudem a realidade analisada. O novo materialismo, pelo contrário, parece especialmente relutante em cogitar o poder das ações e procedimentos políticos; seus teóricos também são avessos a fazer observações sistemáticas, caracterizando o funcionamento do não-humano como além da generalização e julgamento analítico. Assim, o ser humano ideal não é aquele que tenta fazer mudanças, mas aquele que obtém uma “compreensão” de como as coisas “funcionam e são mantidas”. Isto é profundamente semelhante à abstração do “materialismo contemplativo” de Ludwig Feuerbach de que Marx e Engels falam, e que eles acusam de meramente produzir “uma consciência correta sobre um fato existente” sem um interesse em “derrubar o estado existente das coisas”. Marx e Engels determinam que o materialismo contemplativo falha na práxis por causa de sua percepção ahistórica da matéria, cuja sensualidade é devidamente reconhecida, mas não seu processo de se tornar no contexto do “desenvolvimento social, da indústria e das relações comerciais”. Seguindo Marx e Engels, podemos aplicar o mesmo tipo de análise ao novo materialismo, pois ele também reconhece a matéria em sua forma sensorial, mas sem considerar o contexto que moldou essa sensorialidade. O “novo” no novo materialismo não complica ou enriquece o materialismo de uma forma nova, pois reifica a matéria e a torna objeto de admiração contemplativa.13

É importante examinar o uso do termo novo materialismo por John Bellamy Foster, que ele define como a tentativa de Marx de superar os limites da abstração de Feuerbach. O “novo” neste sentido significa que o materialismo deve ser pensado em termos práticos e históricos, com ênfase em como a natureza, incluindo a natureza humana, é o resultado de “relações sociais”. Marx reconheceu a “prioridade ontológica” da natureza sobre a história, mas precisamente porque “a natureza intocada pela história humana era cada vez mais difícil de encontrar”, o foco deveria ser colocado no estudo da “qualidade da interação entre a humanidade e a natureza, ou o que ele acabaria por chamar de ‘metabolismo’ da humanidade com a natureza”. É lamentável que o legado desse novo materialismo seja amplamente negligenciado pelo novo materialismo do século XXI, pois, como Simon Choat aponta, não apenas os dois compartilham alguns objetivos semelhantes, mas o materialismo histórico de Marx “até mesmo antecipou muitas de [suas] percepções”. A omissão, no entanto, é um padrão também visto na forma como a ecologia política é usada por estudiosos como Bennett. Em alguns raros lugares onde ela define o termo, a ecologia política é o que expande a noção usual de política como um assunto exclusivamente humano naquilo que inclui todos, de modo que o “escopo da democratização pode ser ampliado para reconhecer mais não-humanos de mais maneiras”. A definição de Bennett de “materialismo vital” também pode ser de ajuda aqui, o que ela explica que visa “uma política com mais canais de comunicação entre os membros” e não necessariamente “a perfeita igualdade dos atuantes”. Assim, Bennett amplia o significado da política como “ecologia política” e redefine “públicos” como “coletivos humanos e não humanos”. Este é um novo tipo de teoria política postulando que a “unidade de análise apropriada para a teoria democrática não é nem o humano individual nem um coletivo exclusivamente humano, mas o “público” (ontologicamente heterogêneo) que se une em torno de um problema”.14

Embora a professada visão ética de Bennett valha a pena, seu uso genérico do termo ecologia política não esclarece realmente como chegar ao ponto da democracia expandida, ou mesmo como se comunicar com agentes não-humanos, sem maximizar a imaginação humana, ela própria um exercício de agência. Portanto, seus argumentos, nas palavras de Paul Rekret, “escapam…da análise das relações e forças sociais” e, em vez disso, se limitam “à força afetiva de seu apelo ético”. Além disso, porque Bennett postula que mesmo a própria crítica está “cega por seu antropocentrismo”, ela não tem outra escolha senão “apelar para uma transformação espiritual… para que se possa estar ’em sintonia’ ou ‘registrar’ a materialidade”, mesmo quando não é possível conhecer a agência da matéria, dados os limites do conhecimento humano. Isto significa que, para Bennett, a crítica marxista da economia política e a ênfase na práxis humana também é antropocêntrica.15

Como Bennett reconhece, a tradição de “Hegel-Marx-Adorno” que traça “o poder humano de expor hegemonias sociais” pode ser necessária, mas sua “alegação é que também há valor público em seguir o cheiro de um poder coisal, não humano, a agência material dos corpos naturais e artefatos tecnológicos”. Bennett omite assim todo o legado da ecologia política que se baseia no pensamento marxista, que argumenta, principalmente que as relações capitalistas de produção são destrutivas, não só porque criam estratificações sociais, mas também porque criam uma ruptura entre a humanidade e a natureza, além de causar muitos danos à própria natureza. É verdade que a ecologia política como disciplina é “teoricamente católica” e tem várias décadas de existência, com uma tradição suficientemente longa para provir de várias escolas de pensamento diferentes, incluindo “pós-estruturalismo, pós-colonialismo e geografia feminista”. Ao mesmo tempo, a preocupação da ecologia política com os problemas de degradação ambiental, classe e desigualdade está “diretamente enraizada nos estudos marxistas”, ou, dito de outra forma, é “profundamente moldada pelo encontro entre o marxismo e as questões ambientais contemporâneas”.16

Em contraste, a ecologia política nascida a partir da virada não-humana tende a ignorar as questões intersetoriais do capitalismo, degradação ambiental e desigualdade, optando, em vez disso, por se concentrar na materialidade da própria matéria. Ao explicar a qualidade do solo, por exemplo, não se pode simplesmente discutir sua composição material e as minhocas que ele hospeda; muito de sua qualidade tem a ver com histórias socioeconômicas que vieram antes e com a questão de quem vive nele. Esta supressão ou omissão do legado marxista é um problema sério, não tanto porque ela se sobrepõe a uma certa linha de pensamento materialista e deixa uma lacuna de estudo, mas sim porque a falta de um compromisso sério com a crítica da economia política realmente ilustra o quanto os estudos não-humanos podem ser compatíveis com a própria lógica capitalista.

Matéria e Magia

Tão verdadeiro hoje como no tempo de Marx, o não-humano, sejam animais ou objetos inanimados na natureza, é em grande medida mediado pela ação humana sob a forma de mercadorias fungíveis e descartáveis. Os ácidos graxos ômega 3 no século XXI são certamente mercadorias que pressupõem longos processos de produção e intercâmbio dentro da economia global, assim como os alimentos tão básicos como o pão no século XIX eram uma mercadoria envolvendo considerável adulteração, “tudo para economizar custos e aumentar [sua] capacidade de venda”. Todos os objetos na natureza, então — sejam genes ou vírus, ar ou água — já chegam aos humanos fortemente alterados pelas interações com os humanos. Enquanto algumas “ilhas de coral australianas de origem recente” foram mencionadas como uma possível exceção a esta observação durante o tempo de Marx e Engels, hoje seria muito difícil encontrar um elemento destoante.17

A agência da matéria, portanto, mesmo se de alguma forma fosse sentida, experimentada e rastreada pelo humano, já é sempre mediada por atividades humanas. Enunciar este fato mediado do mundo não-humano não é justificar o domínio do humano, nem é insistir na prioridade ontológica da consciência humana; é, ao contrário, apontar que, à luz da condição histórica, a relação humana com o não-humano assume em sua maioria a forma de apropriação, mercantilização e expropriação. O não-humano com o qual interagimos existe principalmente como uma mercadoria com valor de troca, cujas diferenças qualitativas são apagadas e se tornam um objeto com “valor quantitativamente determinado”. Se parece que está empunhando agência para moldar eventos, é devido a um “fetichismo que se prende aos produtos do trabalho assim que eles são produzidos como mercadorias”. Os traços das “características sociais do próprio trabalho do homem” desapareceram. O que permanece é o “caráter misterioso da forma da mercadoria” que aparece como se os objetos existissem por si mesmos e sempre existiram em suas formas atuais (mas sempre efêmeras). Empoderar objetos com tal capacidade e energia é, portanto, semelhante a “fugir para o reino nebuloso da religião: ali os produtos do cérebro humano aparecem como figuras autônomas dotadas de uma vida própria, que entram em relações tanto entre si quanto com a raça humana. Assim é no mundo das mercadorias com os produtos das mãos dos homens”.18

No contexto do momento presente, quando ar, solo e água são, em grande medida, comoditizados, insistir que o não-humano tem agência de formas que nivelam as hierarquias tradicionais entre o humano e o não-humano é engajar-se no pensamento fantástico para permanecer encantado em um mundo desencantado. É conjurar o que não existe — uma realidade na qual o não-humano é mais do que uma mercadoria, mantendo sua integridade ontológica e emanando aleatoriedade e vivacidade contingente. Malm ressalta que a idéia de “atribuir agência e poder aos objetos e não às relações e às pessoas por trás deles… espelha exatamente o tipo de fetichismo que Marx se propôs a desmascarar”. Jennifer Cotter também critica a atribuição de agência aos objetos, argumentando que ela iguala formalmente o humano e o não-humano e assim “aceita a equiparação das pessoas aos objetos que produzem”. A consequência disto é a criação de um “paradigma baseado em classes” que “eleva a ideologia da troca a um novo nível metafísico de abstração, no qual a ‘vida’ é o elemento comum de ‘valor’ que liquida ontologicamente todos os objetos, toda matéria, em um campo proteano, indeterminado, acausal e ontológico de fluxos livres de troca”. Enquanto o não-humano é glamourizado e romantizado como matéria excêntrica e agencial, seu esgotamento e destruição reais são obscurecidos. Também são apagados os trabalhadores humanos que transformam o não-humano em mercadoria.19

A característica que define as entidades não-humanas com as quais interagimos hoje é que elas são não-livres. Elas aparecem como objetos naturais existentes independentemente e não mediadas por processos sociais, mas, na verdade, escondem sua realidade como produtos do trabalho e relações sociais que são historicamente constituídas. Discussões que ignoram a realidade desta mediação econômica e histórica obscurecem a realidade capitalista e lançam um matiz romântico sobre ela, elevando os não-humanos a algo maravilhosamente agencial e robusto. A virada não-humana permite que “todo o mistério das mercadorias, toda a magia e necromancia” acoberte o trabalho humano, bem como disfarce o status de empobrecido do não-humano com apenas o preço de mercado para se explicar. Essa virada lança magia sobre a matéria e torna invisível sua natureza capitalizada e os trabalhadores alienados.20

A questão, é claro, não é que o humano deva remover o véu místico do objeto para que possa recuperar sua verdadeira forma antes da mercantilização e do fetichismo. Não existe uma forma originária que possa ser recuperada no objeto. Como Theodor Adorno elucida em termos filosóficos, mercantilização ou não, o objeto carrega sua própria “coisidade” [“thingness”], um elemento estranho que o sujeito não pode reconciliar ou “relativizar ou liquefazer”. Em outras palavras, o objeto é preponderante sobre o sujeito porque “a sociedade vem antes da consciência individual” e “sempre permanece algo diferente do sujeito”. Ao mesmo tempo, o objeto não pode ser independente do sujeito, pois “pode ser conhecido apenas à medida que se entrelaça com a subjetividade”. Marx entendeu isto, segundo Adorno, e não idolatrou o objeto colocando-o sobre um pedestal. O próprio “plano” do “Marx maduro” para uma “sociedade liberada” não tratava de recuperar a verdade original do objeto tirando seu “caráter de fetiche”, ou de elogiar o poder duradouro do objeto. Ao contrário, tratava-se de organizar o modo de produção de forma que ele se tornasse orientado para “o uso pelos vivos e não para o lucro”. Como Adorno argumenta, o “lamento sobre a reificação” por si só é insuficiente; sem o agir sobre o que “ainda seria mutável pela ação humana”, a “causa do sofrimento humano” simplesmente continuará.21

Em contraste, apontando como os seres humanos são rápidos em ler “qualquer expressão de poder das coisas como um efeito da cultura e do jogo do poder humano”, Bennett propõe que sejamos receptivos e sensíveis ao funcionamento da matéria como tal. Para Bennett, a própria ideia de que podemos, na verdade, estar refletindo sobre a forma fetichizada de mercadoria já é um endosso ao pensamento antropocêntrico. Para um modo alternativo de crítica, ela sugere que cultivemos uma “ingenuidade metodológica” que, ao contrário da de Marx, que se apressa em “desmistificar”, está disposta a “suspender a suspeita”, contendo a agência humana “ilicitamente…projetada nas coisas”. No entanto, a força do mercado — regulada, aprimorada e acelerada pelo homem — já influencia estas coisas como marcas humanas. Elas não chegam aos seres humanos como matéria pura, que só depois são violadas pela agência humana e pela cognição. Elas chegam aos humanos já transformadas por processos sociais, já “entrelaçadas com a subjetividade”. Estes fatos não desaparecerão por assim desejarmos, nem poderão ser suspensos, mesmo que momentaneamente. Os seres humanos não podem mais se dar ao luxo da ingenuidade — certamente não agora, quando a cada verão e inverno levamos o clima cada vez mais ao extremo, com ciclos implacáveis de produção e consumo destrutivos, colocando tanto o humano quanto o não-humano em risco mortal. Ficar maravilhado com o funcionamento volátil da matéria meteorológica não será suficiente. Em outras palavras, não devemos lançar um véu de magia sobre a matéria.22

*No texto original em inglês, a autora se refere ao “human” (“humano”), assim como ao “nonhuman” (não-humano) usando pronomes femininos, como “she”, “her” e “herself”. Essa construção, transposta ao português poderia, contudo, causar certa confusão durante a leitura. Por isso, a equipe de tradução decidiu usar, em português, pronomes masculinos quando referentes ao humano e ao não-humano.

Notas

  1. Theodor W. Adorno, Negative Dialectics (New York: Continuum, 2007), 181.
  2. Os estudiosos frequentemente referidos como defensores da virada não-humana incluem, entre outros, Karen Barad, Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning (Durham: Duke University Press, 2007); Jane Bennett, Vibrant Matter: A Political Ecology of Things (Durham: Duke University Press, 2010); Ian Bogost, Alien Phenomenology: Or What It’s Like To Be a Thing (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012); Diane Coole and Samantha Frost, New Materialisms: Ontology, Agency, and Politics (Durham: Duke University Press, 2010); Graham Harman, Object-Oriented Ontology: A New Theory of Everything (London: Pelican, 2018); Bruno Latour, We Have Never Been Human (Cambridge: Harvard University Press, 1993). Por suas tentativas de pôr um fim à influência humanista — ou, mais precisamente, antropocêntrica, este modo de pensar também é chamado variavelmente de pós-humano, ou pós-humanismo.
  3. Diana Coole e Samantha Frost, “Introducing the New Materialism,” em New Materialisms, 9, 13–14; Harman, Object-Oriented Ontology, 34.
  4. Diana Coole, “The Inertia of Matter and the Generativity of Flesh,” em New Materialisms, 92.
  5. Dipesh Chakrabarty, “The Climate of History: Four Theses,” Critical Inquiry 35, no. 2 (2009): 213–14, 218.
  6. Bonnie Washick e Elizabeth Wingrove, “Politics That Matter: Thinking About Power and Justice with the New Materialists,” Contemporary Political Theory 14, no. 1 (2015): 65–66, 77; Andreas Malm, The Progress of This Storm: Nature and Society in a Warming World (Londres: Verso, 2020), 109–10.
  7. Coole e Frost, “Introducing the New Materialism,” 35.
  8. Bennett, Vibrant Matter, 98.
  9. Bennett, Vibrant Matter, 41–43.
  10. Sebastian Abrahamsson, Filippo Bertoni, Annemarie Mol, e Rebeca Ibáñez Martín, “Living with Omega-3: New Materialism and Enduring Concerns,” Environment and Planning D: Society and Space 33, no.1 (2015): 9–10.
  11. Abrahamsson, Bertoni, Mol, and Martín, “Living with Omega-3,” 11–13; Karl Marx e Friedrich Engels, The German Ideology (Amherst: Prometheus, 1998), 45–46, 66.
  12. Por exemplo, Simon Choat observa que os novos materialistas oferecem alguns pontos convincentes “às custas de uma versão caricaturada do materialismo histórico”. Ver Simon Choat, “Science, Agency, and Ontology: A Historical-Materialist Response to New Materialism,” Political Studies 66, no. 4 (2018): 1029. Coole e Frost, “Introducing the New Materialism,” 30, 32, 36.
  13. Coole e Frost, “Introducing the New Materialism,” 36; Karl Marx, “Theses on Feuerbach,” in The German Ideology, part 1, ed. C. J. Arthur (New York: International Publishers, 2004), 123; Marx and Engels, The German Ideology, 60, 62.
  14. John Bellamy Foster, Marx’s Ecology: Materialism and Nature (New York: Monthly Review Press, 2000), 113–14. Claro, os dois também são conspicuamente distintos, como explica Choat: “Enquanto o novo materialismo define essencialmente o materialismo de uma forma relativamente convencional — como reflexão filosófica sobre a natureza da matéria — o materialismo histórico procura não [re]definir a matéria, mas interrogar as condições materiais historicamente específicas da produção e reprodução humana e, portanto, as condições materiais do desenvolvimento e usos da ciência, a produção e o papel dos objetos e agentes, e nosso trabalho dentro e sobre a natureza”. Ver Choat, “Science, Agency, and Ontology,” 1028. Bennett, Vibrant Matter, xix, 104, 108–9.
  15. Paul Rekret, “A Critique of New Materialism: Ethics and Ontology,” Subjectivity 9, no. 3 (2016): 227–28, 237.
  16. Bennett, Vibrant Matter, xiii; Gavin Bridge, James McCarthy, e Tom Perreault, introduction to The Routledge Handbook of Political Ecology, ed. Gavin Bridge, James McCarthy, e Tom Perreault (Oxon: Routledge, 2015), xx, 7; James McCarthy, Tom Perreault, e Gavin Bridge, conclusion to The Routledge Handbook of Political Ecology, 621.
  17. John Bellamy Foster e Brett Clark, The Robbery of Nature: Capitalism and the Ecological Rift (Nova York: Monthly Review Press, 2020), 109; Marx and Engels, The German Ideology, 46.
  18. Karl Marx, Capital, vol. 1 (London: Penguin, 1990), 144, 164–65.
  19. Malm, The Progress of This Storm, 146–47; Jennifer Cotter, “New Materialism and the Labor Theory of Value,” Minnesota Review 87 (2016): 175–76.
  20. Marx, Capital, vol. 1, 169.
  21. Adorno, Negative Dialectics, 181, 183, 186, 189, 190, 192.
  22. Bennett, Vibrant Matter, xiv, xv, 17.

Para mais links relacionados a esse texto, ver a publicação original.

Essa tradução foi possível graças às contribuições feitas pelo Apoia.se. Se você puder e quiser colaborar, o link é https://apoia.se/leiamarxistas

©Leia Marxistas (2022). Todos os direitos reservados (sobre a tradução). Reprodução somente com autorização prévia do coletivo Leia Marxistas e com referência da fonte original da tradução.

A equipe de tradução e o coletivo Leia Marxistas não necessariamente partilham das opiniões retratadas nos textos traduzidos. Fontes originais e dados citados no texto não são verificados pela equipe de tradução ou pelo coletivo Leia Marxistas.

--

--