Leninismo climático e transição revolucionária
Organização e anti-imperialismo em tempos catastróficos
Escrito por Kai Heron e Jodi Dean. Publicado em 26 de junho de 2022 em Spectre Journal.
Traduzido por Renata Lopes e revisado por Débora Cunha.
Transições são o problema do nosso tempo. Transições energéticas, transições tecnológicas, transições verdes, transições políticas, apenas transições… Revolução. À medida em que as variantes do COVID-19 matam milhões, à medida em que os habitats e espécies desaparecem, as casas queimam ou são varridas, as colheitas falham e dezenas de milhares de refugiados se afogam no Canal da Mancha ou morrem de exposição nos desertos do México, todo mundo sabe que as coisas não podem continuar assim. Qualquer que seja nossa persuasão política, a questão da transição é inevitável.
O comunismo, escreveu Marx e Engels, é “o movimento real que abole o estado atual das coisas”.1 Sendo esse movimento, o comunismo significa transição. É a abolição da relação salarial, da forma-valor, da propriedade privada, do Estado e dos regimes de violência de gênero e raça que sustentado o sistema. Essas coisas não desaparecem da noite para o dia. “Entre a sociedade capitalista e a comunista”, escreve Marx em outro lugar, “há um período de transformação revolucionária de uma em outra. Corresponde a isso também um período de transição política em que o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado.”2
Transição é revolução. O empurra e puxa da transição, seus recuos e avanços, estão no centro das tradições revolucionárias, marxistas e não marxistas. Apesar disso, os movimentos e teóricos de hoje raramente dão muita atenção a isso. A transição é uma caixa preta que fica entre o presente e nossas visões idealizadas do futuro, seja ela um Novo Acordo Verde radical, o comunismo ou um futuro de decrescimento. Em um extremo, alguns rejeitaram inteiramente a questão da transição, imaginando a implementação imediata do comunismo por meio de “medidas de comunização”.3 Em outro, a transição se prolonga em favor da tarefa aparentemente mais urgente de lutar pela sobrevivência dentro do capitalismo.
Por mais inspiradoras que sejam as visões de futuro da esquerda anticapitalista, por mais que queiramos reduzir o problema da transição à medidas imediatas, e por mais compreensível que seja priorizar o imediatismo da sobrevivência, todos os três evitam o problema da transição. Eles negam sua duração ou negam o fato de que a transição é o comunismo em formação. A forma como nos afastamos do capitalismo molda nosso destino. E devemos nos afastar do capitalismo.
Um laboratório de transição
Assim como as vinte e cinco COPs que a precederam, a COP26 deveria ser o lugar onde os líderes mundiais encontrariam soluções políticas para a catástrofe ecológica através de acordos. Neste ponto, a cúpula falhou. Em outro sentido, porém, a COP26 foi um sucesso. Mostrou como o pensamento capitalista está muito à frente daquele de esquerda quando se trata de pensar a transição. Uma abordagem dialética da COP26, uma que se atente à sua forma enquanto despoja seu conteúdo capitalista, nos ajuda a abordar o problema da transição revolucionária hoje.
Ao invés de se orientar à uma transição justa, a COP26 perpetuou os interesses do imperialismo e do capitalismo fóssil. Primeiramente, o acordo de Glasgow enfatizou a “redução gradual por fases” do uso do carvão quando deveria ter abrangido o trio de combustíveis fósseis composto por carvão, petróleo e gás. O carvão continua sendo essencial para as economias da China e da Índia, à medida que se recuperam de séculos de subjugação colonial, mas não para os EUA, o maior produtor mundial de petróleo e gás. A transição geopolítica e energética que a COP imagina beneficia as potências imperialistas, não a maior parte do planeta. Os produtores de petróleo e gás e os Estados vinculados ao capital fóssil “compensarão” suas emissões por meio de “soluções baseadas na natureza”, enquanto as chamadas energias renováveis entram na mistura sem substituir os combustíveis fósseis a tempo de evitar o desastre do aquecimento.4
Em segundo lugar, os EUA, a UE, o Reino Unido e a Austrália retiraram o mecanismo de perdas e danos do texto final do acordo de Glasgow. Apresentado por todos os 138 países em desenvolvimento, este mecanismo é o apoio financeiro que os países mais ricos devem aos mais pobres. Uma funcionalidade de perdas e danos semelhante, exigida por nações insulares, também foi removida do acordo final por países “desenvolvidos”, temerosos de que tais cláusulas pudessem levar à responsabilidade legal por emissões passadas, abrindo a porta para pedidos de reparações.
No que diz respeito a interromper o aquecimento global, manter os combustíveis fósseis no solo e em questões de justiça global, a COP26 foi um fracasso completo. No entanto, elementos dos procedimentos da COP26 apontam para além de seu conteúdo capitalista, em direção a um horizonte comunista: expressam uma teoria de transição verde na escala relevante. O reconhecimento da COP26 de que um projeto em larga escala de restauração de paisagens terrestres e marítimas e de que um movimento em direção a práticas agrícolas ecologicamente benignas são necessários para sustentar a vida na Terra é um progresso.
Por exemplo, “soluções baseadas na natureza” para a crise climática foram destaque na cúpula.5 Quarenta e cinco governos concordaram em aumentar os esforços para proteger a natureza não humana e avançar práticas agrícolas sustentáveis. No total, “mais de £4 bilhões em novos investimentos no setor público foram prometidos para inovação agrícola, incluindo culturas resilientes ao clima e soluções regenerativas para melhorar a saúde do solo” com o objetivo de tornar essas práticas acessíveis para “centenas de milhões de agricultores”.6 Ecossistemas restaurados e agricultura regenerativa podem aumentar a biodiversidade, reparar solos deteriorados, aumentar a retenção de água no solo, reduzir inundações, reduzir insumos não agrícolas, aumentar os rendimentos, melhorar a resiliência climática e capacitar agricultores e comunidades agrícolas. Mas é claro que, dentro da estrutura da COP26, “agricultura sustentável” e “culturas resilientes ao clima” também podem significar culturas geneticamente modificadas patenteadas e insumos não agrícolas que enfraquecem os agricultores, atraindo-os para sistemas de agricultura verticalmente integrados que acumulam rendas ou capturam valor para agronegócios mundiais. Pior ainda, como líderes indígenas e pastores enfatizaram, “soluções baseadas na natureza” podem fortalecer práticas de conservação que deslocam à força comunidades indígenas e pastoris de suas terras em nome da proteção de uma ideia eurocêntrica de “natureza” intocada e ontologicamente independente de nós.
Os elementos necessários para uma transição para um futuro pós-capitalista, comunista, estão lá, mesmo na COP26 imperialista. Como a temperatura da Terra já está mais de um centígrado acima dos níveis pré-industriais e os cortes planejados são insuficientes para reduzir as emissões de carbono para os níveis necessários,7 a única resposta apropriada é a nacionalização, regulamentação e proibição de combustíveis fósseis dentro de uma estrutura global em que os países imperialistas aceitem a responsabilidade pelas mudanças climáticas e forneçam todo o apoio financeiro necessário aos países pobres. Isso é óbvio e não é particularmente complicado se não estivermos presos a leis e suposições relativas à propriedade privada.
O imperialismo está estabelecendo um futuro que aumenta a dívida e a dependência dos povos colonizados e ex-colonizados, aumentando a miséria e a exploração global. Os governos do capital fóssil não estão comprometidos com soluções baseadas na natureza que exigem respeito à soberania indígena. Os objetivos dos imperialistas são dinheiro e poder, capital e controle. O movimento climático não pode mais prosseguir como se nosso objetivo fosse persuadir esses governos a agir.
A revolução é, portanto, uma resposta prática e calculada à catástrofe climática que se desenrola. Dadas as décadas de fracasso capitalista em transformar a produção enquanto ainda havia tempo para manter as temperaturas dentro de um grau de níveis pré-industriais, a revolução deixou de ser uma resposta possível às crises ramificadas do mundo para a resposta mais provável. A agitação social revolucionária resultará da migração em massa de pessoas fugindo de enchentes, incêndios e secas, revoltando-se por comida, abrigo e energia e tomando o que é seu por direito. Resultará de reacionários armados, indignados e racistas fartos dos “excessos” do governo e dispostos a tomar o poder em suas próprias mãos em nome da autodefesa. A questão é a direção que as revoluções tomarão: em direção à abolição do eco-apartheid e ao estabelecimento de sociedades equitativas e habitáveis ou em direção ao entrincheiramento do autoritarismo, fascismo e neofeudalismo. Essa é a questão que torna a transição política a principal questão que enfrentamos na esquerda.
A política de transição
Há uma década, em Tropic of Chaos, Christian Parenti destacou o fato de que a crise climática é uma crise política. Enquanto outros estavam — e ainda estão — apresentando as mudanças climáticas em termos morais e ontológicos, Parenti reconheceu o imperativo de gerar a vontade política para enfrentar e derrotar o sistema capitalista que impulsiona o aquecimento global.8 Esse reconhecimento permitiu que Parenti nomeasse a contradição subjacente. Precisamos de uma esquerda poderosa capaz de usar o poder do Estado para enfrentar e corrigir os impactos grosseira e globalmente desiguais das mudanças climáticas, mas não temos tempo para construí-la.
Os próprios problemas estruturais que nossos sistemas políticos impõem ao enfrentamento das mudanças climáticas apresentam barreiras para a construção de um forte contrapoder de esquerda. Os bolsos profundos do setor de combustíveis fósseis abrigam muitos políticos. Poucas autoridades eleitas estão confiantes de que a preocupação declarada de seus eleitores com a catástrofe ambiental em curso se traduz em apoio ao sacrifício ou à mudança, especialmente após décadas de austeridade imposta e redistribuição ascendente da riqueza. Para a maioria das campanhas políticas, a mudança climática não é uma questão vencedora. Não é de se admirar, então, que a única abordagem de transição tolerada pelo establishment político dos EUA seja a mais adequada ao capitalismo fóssil e ao próprio interesse geopolítico dos EUA; como as elites de outros países do núcleo capitalista, eles planejam se defender do pior aquecimento global enquanto fortalecem suas fronteiras contra a inevitável onda de refugiados climáticos. Este é um mundo de eco-apartheid: um regime imperialista de acumulação de capital baseado na exploração da natureza não humana e dos povos racializados em zonas de sacrifício que se estendem das periferias aos centros.
Dadas as barreiras apresentadas pela política eleitoral, as manifestações de massa e a desobediência civil parecem ser um caminho promissor de mudança. Por mais momentaneamente satisfatórias que essas atividades possam ser, elas não se concentram no problema que as torna disponíveis como alternativas: o fracasso das democracias capitalistas. As manifestações de massa são eficazes quando podem influenciar a tomada de decisões políticas. Mas isso pressupõe a presença de decisores dispostos a fazer escolhas difíceis e potencialmente impopulares, o que nos leva de volta ao impasse político geral: Para que servem os apelos à mudança se ninguém que pode fazer a mudança os ouve?
Diante desse impasse político, muitas mobilizações climáticas têm como alvo os atores do mercado, sejam consumidores, bancos, instituições sem fins lucrativos ou corporações. O objetivo de impactar motoristas de SUVs que consomem muita gasolina, por exemplo, é o de gerar mudanças no estilo de vida. Essa e outras ações voltadas para o consumidor têm objetivos louváveis.9 No entanto, os gastos com consumo pessoal nos EUA aumentaram constantemente desde a década de 1970 (apesar do declínio acentuado e da rápida recuperação em 2020 devido à pandemia). Sem mudanças na produção e na política, os esforços focados em mudanças voluntárias no consumo permanecerão inadequados.
O desinvestimento surgiu como uma estratégia de movimento: ativistas pressionam universidades e museus a abrir mão de seus investimentos em empresas de petróleo e gás. O movimento obteve uma vitória visível em setembro de 2021, quando a Universidade de Harvard anunciou que eliminaria os investimentos indiretos no setor de combustíveis fósseis, já tendo eliminado os investimentos diretos. No entanto, os críticos do desinvestimento como estratégia apontam sua falta de impacto no mundo real. Não apenas constranger as instituições ao desinvestimento não impede que as empresas de combustíveis fósseis levantem capital, mas como estratégia pressupõe um corpo social unido em torno de valores compartilhados, como se não houvesse pessoas energizadas pela perspectiva de mais petróleo e mais perfuração. Para todas as crianças em idade escolar que faltam às aulas nas sextas-feiras, há o mesmo número de isolacionistas preocupados com a independência energética e motoristas que associam motores com liberdade. Quando a divisão vai até o fim, a suposição de valores compartilhados não se sustenta — na verdade, a ausência desses valores compartilhados é precisamente o problema que trava as democracias capitalistas e torna a revolução tão provável quanto necessária. Políticos sem vergonha não podem ser constrangidos porque não estão isolados e sozinhos; seus eleitores não estão preocupados com a exploração e a desigualdade capitalistas ou com as mudanças climáticas.
Em 2011, Parenti encarou o problema político que a mudança climática representa para as democracias capitalistas:
O fato é que o tempo se esgotou na questão climática. Ou o capitalismo resolve a crise, ou destrói a civilização. Ou o capitalismo começa a lidar com a crise agora, ou enfrentamos o colapso civilizacional a partir deste século. Não podemos esperar por uma revolução socialista, comunista, anarquista ou de ecologia profunda neoprimitiva; nem por uma conversão localista baseada na nostalgia, em um retorno à mítica economia de cidade pequena da América pré-industrial como forma de avanço.10
Estávamos sem tempo há uma década. Mas Parenti estava muito otimista, mesmo naquela época. Mesmo enquanto sua análise detalha as maneiras pelas quais o imperialismo aumenta o impacto mortal das mudanças climáticas em uma série de países eviscerados pelo colonialismo e pelo militarismo, Parenti, em última análise, acha que o capitalismo ao qual estamos presos pode ajudar a resolver alguns problemas, especialmente se for acompanhado por um valorização da necessidade de ação estatal e avanços tecnológicos no sequestro de carbono.11 Parenti implica uma lógica de oposição entre capitalismo e colapso civilizacional, como se o próprio capitalismo não fosse um destruidor de culturas e comunidades, como se sua continuação não fosse o motor do colapso . Ele está certo que o tempo acabou. Ele está certo em seu argumento em geral sobre a necessidade do Estado. E ele está certo de que existem elementos do sistema atual que podem e devem ser implantados em uma transição comunista verde. Parenti falha, no entanto, em abandonar o projeto de uma tomada socialista do Estado e reconstrução da sociedade.
É uma fantasia pensar que o capitalismo pode gerenciar uma transição de combustíveis fósseis para os chamados “renováveis” de uma maneira que não signifique morte e catástrofe para muitos milhões de vidas humanas e não humanas. A Global Financial Alliance for Net Zero (GFANZ), anunciada na COP26, prometeu disponibilizar até US$ 130 trilhões para financiar a transição dos combustíveis fósseis.12 A análise de Whitney Webb destaca a predação imperialista subjacente à iniciativa. Composto pelos bancos mais poderosos do mundo, o GFANZ está criando “uma arquitetura financeira internacional” que investirá grandes quantidades de capital em projetos específicos de países. Bancos multilaterais de desenvolvimento (BMDs), como o Banco Mundial, desempenharão um papel crítico na direção desses investimentos. As nações em desenvolvimento ficarão presas em dívidas, suas dívidas usadas para forçá-las “a desregulamentar os mercados (especificamente os mercados financeiros), privatizar ativos estatais e implementar políticas de austeridade impopulares”13, beneficiar o capital ao mesmo tempo que desmantela os setores públicos e empobrece as populações. A resposta capitalista à mudança climática é um imperialismo verde predatório intensificado. É o capitalismo como colapso civilizacional.
A indústria de combustíveis fósseis e os maiores produtores mundiais de petróleo e gás resistirão a quaisquer cortes reais na produção com tudo o que têm. Acordos internacionais e mudanças políticas até agora pouco fizeram para mudar o equilíbrio de poder. Nos dias que se seguiram à COP26, o presidente-executivo da BP, Bernard Looney, parecia inabalado por acordos para chegar à neutralidade de carbono. “Pode não ser popular dizer que o petróleo e o gás estarão no sistema de energia nas próximas décadas, mas essa é a realidade”, disse ele à CNBC.14 A menos que haja uma revolução, as próximas décadas serão definidas por uma luta entre capitais concorrentes — capital fóssil de um lado, capital “verde” do outro, com o capital financeiro recebendo sua parte de ambos — disputando uma fatia maior do uso cada vez maior e mais insustentável de energia no mundo. A EIA prevê que o consumo global de energia aumentará em 50% até 2050,15 algo que os estudos sobre o decrescimento nos mostram que mal podemos pagar, mesmo que uma parcela maior venha das chamadas energias renováveis.16
No entanto, em um ponto, pelo menos, concordamos com os capitalistas verdes, empreendedores de tecnologia e líderes mundiais imperialistas que sonham com uma transição sem atrito para sistemas de energia renovável, fazendas verticais de alto rendimento, carnes de laboratório e a dissociação do “crescimento” (acumulação de capital) do ganho material: uma transição de algum tipo é inevitável. Não se pode dizer o suficiente. A transição tornou-se a questão de nossos tempos, tanto para o capitalismo — à medida que as crises ecológicas agravadas começam a corroer a ficção da compatibilidade do capital com o florescimento humano e não humano — quanto para movimentos radicais e revolucionários.
Uma, duas, muitas rejeições de transições
O problema da transição se faz sentir através da proliferação de imaginários pós-capitalistas. Coletivamente, imaginamos Novos Acordos Verdes, futuros de Decrescimento, um Acordo Vermelho, um Futuro de Pequena Fazenda, Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado, Socialismo de Meia-Terra, horizontes feministas descolonizados, matrizes agroecológicas e muito mais. No entanto, cada um deles salta, evita ou atrasa o problema da transição. Como vamos daqui, de um mundo em chamas, para lá, para um mundo lentamente, mas seguramente, se regenerando, após séculos de violência, pilhagem e exploração? Qual é a nossa estratégia? Quais são nossas táticas imediatas? Este é um problema que não pode ser evitado.
Em Corona, Climate, Chronic Emergency, Andreas Malm sugere que nem o horizontalismo anarquista nem a social-democracia são capazes de descarbonizar a sociedade com rapidez suficiente para evitar as terríveis consequências do colapso ecológico. Ensaiando uma familiar crítica marxista ao anarquismo, Malm considera a tradição muito descentralizada, muito oposta a programas, à disciplina e ao potencial do Estado como instrumento de transição revolucionária. A social-democracia é igualmente inadequada para a crise por causa de sua incapacidade de agir rápida e decisivamente. “A social-democracia”, escreve Malm, “funciona na suposição de que o tempo está do nosso lado. Deve haver bastante tempo.” O problema — e aqui Malm está correto — é que o tempo não está do nosso lado. Mesmo supondo que outro Bernie Sanders ou Jeremy Corbyn aparecesse no próximo ciclo eleitoral, e mesmo supondo que eles fossem eleitos por uma maioria esmagadora, um sistema social-democrata com um progressista em seu comando precisaria ir além de si mesmo para responder à crise ecológica em tempo. Precisaria implementar medidas extraordinárias. Precisaria agir com o tipo de pressa que não foi visto em nenhuma social-democracia fora das condições de guerra.
Se nem o anarquismo nem a social-democracia estão à altura da tarefa, então o que nos resta? A resposta de Malm pretende provocar: eco-leninismo e comunismo de guerra. Inspirando-se na mobilização em massa da Rússia revolucionária entre 1918 e 1921, Malm propõe um projeto de nacionalização rápida, dissolução de classe e privilégio e redistribuição de terra e riqueza. Tudo isso, diz Malm, os bolcheviques e os camponeses e trabalhadores da Rússia conseguiram nas circunstâncias mais inóspitas do rescaldo da Primeira Guerra Mundial, sem acesso a recursos essenciais e durante uma invasão imperialista anti-revolucionária. Poderia algo semelhante ser possível nas circunstâncias inóspitas de hoje e contra nossas próprias forças de reação? Não podemos imaginar uma resposta comunista de guerra ao colapso ecológico? O comunismo de guerra, para Malm, funciona como um mapa cognitivo, uma maneira de os movimentos anticapitalistas de hoje se orientarem em um mundo de inevitáveis convulsões, revoluções e contrarrevoluções.
Do nosso ponto de vista, a proposta de Malm evita o problema da transição revolucionária. O comunismo de guerra é um plano para o que vem depois que um movimento revolucionário tomar o poder ou depois que os movimentos sociais persuadirem de forma implausível os Estados capitalistas a agirem, por meio de uma campanha coordenada de desobediência civil em massa e sabotagem (como sugere o argumento de Malm em How to Blow Up a Pipeline). O que precisamos é de uma maneira de construir nossas forças e capacidades políticas no presente, para nos sustentarmos nas catástrofes vindouras e conquistar um futuro comunista. O comunismo de guerra deve ser um espelho de nossa situação e, ao fazê-lo, mostrar a distância que devemos percorrer. Mas precisamos de mais do que espelhos; precisamos de uma política que funcione a partir das condições materiais de luta que nos confrontam, não uma que se afaste delas. Precisamos de uma política de transição revolucionária.
O ensaio do Out of the Woods Collective (OWC), “Disaster Communism” transforma as tarefas de sobrevivência cotidiana nos meios para construir essa política.17 OWC habita na realidade confusa do colapso ecológico. O Coletivo se inspira no estudo de Rebecca Solnit sobre “comunidades de desastres”, relações temporárias de ajuda mútua e solidariedade que surgem na sequência de desastres socionaturais como o furacão Katrina ou o COVID-19. Os estudos de Solnit mostram que, logo após os desastres, as pessoas são mais propensas a deixar de lado as diferenças e o interesse próprio do que a cair em cenários de Mad Max. Cozinhas comunitárias, doações, fundos de solidariedade e empréstimos de itens essenciais para sobreviver e reconstruir criam um senso mais profundo de coletividade e sociabilidade.
Mas as comunidades de desastres são coisas passageiras. O Estado capitalista, orientado para a proteção da propriedade privada, da forma salarial e da hierarquia racial e de gênero, invariavelmente intervém para reimpor sua ordem, atacando a auto-organização e a solidariedade. A questão do coletivo, portanto, torna-se a de como “desmantelar as ordens sociais que tornam os desastres tão desastrosos, ao mesmo tempo em que torna comum o comportamento extraordinário que elas provocam”.18 O coletivo não sugere que mais desastres sejam necessários para incitar o comunismo de desastres; em vez disso, a aposta da OWC é que as comunidades de desastres possam se tornar um desastre para o capitalismo. O que é necessário, eles escrevem, é um “processo revolucionário de desenvolvimento de nossa capacidade coletiva de resistir e florescer que emerge dessas lutas. O comunismo de desastre é um movimento de dentro, contra e para além do desastre capitalista em andamento.”19
A insistência do OWC na questão de como abrir um espaço além do capitalismo dentro do capitalismo é essencial. É a pergunta que os organizadores trabalhistas fazem sempre que os trabalhadores estão prestes a entrar em greve: como podemos criar solidariedade fora da competição quando a sobrevivência está em jogo? Ao mesmo tempo, as propostas práticas do coletivo permanecem impressionistas. Eles clamam por “aproveitar os meios de reprodução social”, o apoio mútuo e estender e sustentar momentos de coletividade e abundância comunal. “O comunismo do comunismo do desastre”, escrevem, “é uma mobilização transgressora e transformadora.”20 Mas as questões de quem faz a mobilização, com que formas de organização e como não são abordadas.
Alguns podem achar injusto esperar respostas para essas perguntas. A auto-organização das classes trabalhadoras responderá a elas na e pela luta. No entanto, essa genuflexão familiar ao fato de que a revolução produz suas próprias formas de luta afasta a revolução de nós, como se fôssemos observadores e não participantes das lutas de nosso tempo. Sugere que, de alguma forma, não cabe a nós agir, tomar partido, assumir riscos, nomear movimentos, sujeitos e formas organizacionais que possam realizar a transição revolucionária hoje. Esta é uma distância que não podemos nos permitir em tempos de catástrofe socioecológica generalizada.
Nos últimos anos, a construção de bases tornou-se outra resposta popular a essas perguntas.21 A construção de bases vê corretamente as limitações de saltar sobre o problema da transição. Seus proponentes argumentam que, em vez de projetar nossos imaginários em futuros distantes, devemos desafiar o capital “através de sindicatos industriais ou de arrendatários, associações de apoio mútuo e cooperativas, para construir um ‘poder duplo’ contra o Estado capitalista, criando uma sociedade operária de organizações de massa que são independentes de qualquer partido político capitalista.”22 As lacunas no pensamento de Malm e do OWC sobre transição desaparecem. Quem faz a mobilização? “Um grupo pequeno e comprometido de pessoas com uma ideia compartilhada de socialismo e construção de bases deve estar disposto a se unir e se dedicar ao trabalho de construção de bases socialistas.”23 Que mobilização é necessária? “Organizar os desorganizados” por meio de apoio mútuo, sindicatos de inquilinos, angariação de votos, programas de alimentação e muito mais.24
No entanto, por mais importante que seja esse trabalho, os construtores de bases estão decididamente confusos sobre como a atenção às necessidades materiais imediatas dos trabalhadores e comunidades dentro do capitalismo se transforma em luta revolucionária. Dada a devastação causada por trinta anos de austeridade neoliberal, como o esforço para abordar os problemas reais das pessoas se transforma em uma política que reconhece o capitalismo como a causa subjacente?
Os construtores de bases estão cientes disso. Em Regeneration, Teresa Kalisz, do extinto Marxist Center, observa que a construção de bases como tática não é intrinsecamente revolucionária; é uma tarefa estratégica que “todas as organizações políticas saudáveis devem assumir, sejam elas comunistas, socialistas ou anarquistas; mesmo grupos liberais muitas vezes se engajam na construção de bases.”25 O problema é que “ao não ir além dessas táticas e conectá-las a uma visão política”, a esquerda marxista “corre o risco muito real de nos apresentar e engajar nossa organização em uma política de maneira apolítica.” A transição é adiada, posta de lado em meio às demandas intermináveis das incessantes necessidades cotidianas. “Solidariedade, não Caridade!” diz o apelo dos construtores de base, mas, na prática, a linha entre solidariedade e caridade nem sempre é fácil de definir e, portanto, a vantagem que a construção de base tem sobre Malm e o OWC, por um lado, se perde por outro. Ela reconhece os limites de saltar sobre o problema da transição, apenas para se deparar com o adiamento da transição na direção oposta.
Saltos e Rupturas
O desafio inevitável da transição, de ir de onde estamos para onde precisamos estar, é um desafio político. Como Christian Zeller argumentou, o “nós” deve ser produzido, gerado e construído.26 Ele precisa durar para além das semanas e meses iniciais de um desastre e estender-se para além dos bairros, das relações pessoais e dos membros de uma comunidade que se engajam em apoio mútuo (devemos observar aqui como a linguagem da comunidade obscurece as divisões, especialmente as de classe — proprietários não precisam compartilhar). O “nós” necessário para uma abordagem anti-imperialista da mudança climática, para uma transição justa, comunista, tem que ser consciente de si mesmo como um “nós”.
Além disso, essa consciência deve estar ligada a uma compreensão compartilhada de onde estamos e onde precisamos estar, e à um reconhecimento de que só podemos chegar onde precisamos por meio de uma ação coletiva organizada. Este “nós” deve ser legível para si mesmo e para os outros como uma unidade prática. Por fim, além dessas exigências de resistência, escala e consciência coletiva, esse “nós” deve estar disposto e ser capaz de agir coletivamente, como um todo, desafio que obriga à produção do nós que se pressupõe. Estamos juntos porque só assim podemos vencer. E devemos vencer — o florescimento das pessoas e do planeta depende de enfrentarmos o desafio de uma transição justa.
A política climática global enfrenta problemas de escala e coordenação. A dimensão da escala é fácil de ver: precisamos de formas de luta que sejam mais do que assembléias de moradores e comunidades experimentais de resistência. Precisamos de abordagens organizacionais que operem em escalas nacionais e internacionais, que possam adotar perspectivas e estratégias nacionais e internacionais.
Como tomamos decisões sobre estratégias, táticas e prioridades, em escala nacional e internacional? Que suposições orientam nossas deliberações nessas escalas maiores? É aqui que os valores compartilhados e os princípios comuns são extremamente importantes. É aí que entra a questão da nossa política: qual é a linha que temos em comum, os princípios pelos quais nos comprometemos a lutar? Todos sabemos que, à medida que a catástrofe climática se intensifica, o mesmo acontece com os etnonacionalismos. Precisamos agora estabelecer um compromisso internacional anti-imperialista irrevogável que priorize as regiões e os povos mais imediata e fortemente impactados pelas mudanças climáticas. Isso, claro, inclui acolher refugiados climáticos e fornecer todo o apoio material e financeiro necessário para uma tradição justa.
O desafio da transição, portanto, nos empurra para aquela forma de organização política que perdura, escala, sustenta uma consciência coletiva e permite uma ação coordenada. A teoria e a prática de Lênin apontam para tal forma — o partido. A forma partidária é uma resposta específica a um desafio específico, ou seja, o imperativo de se preparar para uma situação que nunca pode ser totalmente prevista nem determinada. A esquerda estava despreparada para a crise financeira e a Grande Recessão de 2008. Estava despreparada para os sucessos de 2011 e, portanto, incapaz de defendê-los e ampliá-los. Estava despreparado para a pandemia do COVID, uma crise ecológica planetária através da qual nenhum poder de esquerda teve capacidade de construir-se. Não temos mais o luxo da espontaneidade. Para que as mudanças climáticas não intensifiquem a opressão e acelerem a extinção, temos que construir e unir organizações adequadas ao desafio de pensar e agir transicional.
O imperativo da forma partidária surge de uma análise de nossa conjuntura: como podemos resistir, dimensionar e criar estratégias? Como podemos vencer? Não podemos esperar que as manifestações de massa exerçam pressão suficiente para que os governos promulguem as mudanças necessárias para uma transição justa. As manifestações podem levar os governos a fazer algo, mas esse algo protegerá a propriedade e os lucros das classes dominantes e promoverá os interesses das potências imperialistas. Dada a inevitabilidade de incêndios, inundações, secas, fome e migração em massa, devemos esperar que os governos mudem. Haverá insurreições. A revolução está na mesa. Temos que construir o poder organizacional capaz de usar essas oportunidades para apropriar-se do Estado e conduzir a reestruturação energética, produtiva e social. No mínimo, Malm e o Coletivo Zetkin estão corretos quando enfatizam que o próximo período será de polarização e confronto cada vez mais intensos.27 A política anti-clima da extrema direita deve destruir qualquer ilusão remanescente de que os combustíveis fósseis podem ser abandonados através de algum tipo de transição suave e racional. O fato desse conflito significa que devemos nos preparar para uma transição caótica, incerta e revolucionária.
Em uma manifestação da Extinction Rebellion em novembro de 2021, o ambientalista e radialista canadense David Suzuki anunciou: “vai haver oleodutos explodidos se nossos líderes não prestarem atenção ao que está acontecendo.”28 Ele está certo; haverá. Mas esse fato não nomeia uma política; não indica uma linha política. O que se segue desses atos, além da escalada imediata da violência e da repressão do Estado? Os cidadãos, observadores, rejeitarão imediatamente o uso da força pelo Estado ou serão influenciados por décadas de propaganda antiterrorista? Algumas pessoas responderão, imitando a tática e espalhando o descontentamento? Outros, então, usarão seu arsenal pessoal de fuzis em nome da autodefesa?
O leninismo climático nos obriga a nos preparar politicamente para esses eventos, a concebê-los como táticas empreendidas por um partido após uma análise da correlação de forças. A perspectiva da revolução deve ser adotada como ponto de vista de avaliação de meios e fins, estratégias e táticas, avaliação realizada por uma organização com capacidade de executá-la. Devemos assumir a realidade da revolução e planejar sua eventualidade. Mais uma vez, não podemos saber quando e onde ela vai começar e como vai se desenrolar. No entanto, assim como as agências de inteligência e os think tanks das potências imperialistas, também nós temos que contar com o fato de que as mudanças climáticas levarão a extraordinárias convulsões sociais. Já o fizeram, como demonstram mais de uma década de crises de refugiados e guerras por recursos.
Assim, chamamos de Leninismo Climático a política necessária nesta conjuntura de imperialismo e emergência climática. O partido revolucionário é sua premissa básica. Aqui antecipamos uma objeção familiar: construir um partido revolucionário — especialmente no contexto do anticomunismo generalizado — levará muito tempo (como qualquer número de partidários desapontados lhe dirá).
Por um lado, isso é verdade. A construção de partidos pode ser um trabalho lento, o recrutamento de uns e dois quando são necessários milhões. Por outro lado, a mudança acontece aos trancos e barrancos. A história se move, como diz Daniel Bensaid, seguindo Lênin, através de saltos e rupturas.29 Ninguém poderia prever, antes do verão de 2019, que os EUA experimentariam seus maiores protestos em massa (mais de 35 milhões de pessoas) após o assassinato de George Floyd.
Quando uma base partidária forte é estabelecida e um período de agitação política está em andamento, o crescimento pode ser rápido e dramático. Os bolcheviques cresceram dez vezes em tamanho entre fevereiro e setembro de 1917 (de 20.000 para 200.000 membros). Uma vez que reconhecemos a não linearidade do tempo político, podemos aceitar a necessidade de usar os refluxos do movimento, o tempo de inatividade política, para construir e preparar, para adquirir as habilidades e fazer as conexões que nos permitirão aproveitar as oportunidades quando elas surgirem. Esse reconhecimento nos permite formular o Leninismo Climático mais precisamente como preparação somada à não linearidade dentro das condições materiais dadas, ou seja, a organização de uma coletividade com capacidade de responder à emergência climática.
Como então conectamos a construção de partidos com a catástrofe climática, ou, à luz de nossa discussão acima, como combinamos os melhores insights de Malm, do Out of the Woods Collective e dos construtores de bases? Dito de outra forma, como o trabalho de construção de partidos também faz o trabalho de luta climática ou como transformamos as práticas do movimento em progresso em duas frentes, construção de partidos e militância climática?
Formular as perguntas nos direciona para os terrenos em que as respostas surgirão. O conjunto de táticas familiares aos atores do movimento — bloqueios, ocupações, marchas, comícios — torna-se um meio de recrutar quadros partidários, construir alianças coerentes e tecer um fio vermelho entre os movimentos. Da mesma forma, experimentos em agricultura, jardinagem urbana e outras microiniciativas orientadas para a sobrevivência podem ser expandidas para o repertório de práticas partidárias, tratadas como oportunidades para a construção de habilidades e camaradagem. Em cada caso, atividades previamente separadas — um bloqueio aqui, um acordo de ajuda mútua ali — tornam-se conscientemente integradas em uma teoria e um plano mais amplo para construir o poder necessário para efetuar uma transição justa.
A transição política, econômica, energética e social requer planejamento centralizado. Os capitalistas reconhecem este fato. Um editorial do Financial Times, por exemplo, exigia que um órgão central de planejamento formulasse planos para a transição em energia, transporte, edifícios, indústria e agricultura porque “o mecanismo de preços luta para coordenar uma transformação rápida nessa escala”30. Uma transição justa, anti-imperialista e orientada para as lutas dos oprimidos exige ainda mais coordenação e planejamento: temos um inimigo capitalista a derrotar e sua hegemonia a desfazer.
Por isso, partidos revolucionários organizados e interligados são indispensáveis. Essas partes facilitam o treinamento e a coordenação; aprendemos uns com os outros. Este trabalho de coordenação é o mesmo trabalho necessário para responder à crise climática. Construir organizações políticas para lutar por uma transição justa constrói as capacidades, as infraestruturas humanas e organizacionais de que precisamos para realizá-la. Centralizar as lutas climáticas, antirracistas, anti-imperialistas e outras em um partido transforma a análise disciplinada e a preparação em uma escola capaz de gerar planejamento necessário para implementar as medidas que a transição justa exige. Em suma, o partido é uma forma de construir alianças de longo prazo e formar quadros, requisitos para qualquer política de mudança climática que reconheça a atualidade da revolução.
A construção de bases e comunidades de sobrevivência falham em escala porque seu foco é local; trabalha-se duro para resolver os problemas locais. Um partido — e uma Internacional — vêm de perspectivas maiores: o nacional, o regional e o global. Essas perspectivas maiores são aquelas que a crise climática nos impõe. E são de vital necessidade para travar uma luta política que nos prepare para os desafios que se avizinham.
A coalizão internacional dos oprimidos
A convocação de um partido revolucionário pode parecer uma resposta muito familiar aos impasses da democracia capitalista. Mas o leninismo climático não pode aplicar mecanicamente as prescrições políticas de Lênin. O leninismo climático deve significar algo mais abrangente. Deve situar-se e extrair-se de toda a tradição de pensamento e luta revolucionários que se posicionou como uma continuação da Revolução Russa. Isso inclui revolucionários anticoloniais que, nas palavras de Fanon, acharam que deveriam “esticar” Lenin e as lições da revolução, remodelando-as para seu próprio tempo e contexto: intelectuais e organizadores como Walter Rodney, Amilcar Cabral, Samir Amin, Jose Carlos Mariátegui, Antonio Gramsci, A. M. Babu, Harry Haywood, Sam Moyo e Rossana Rossanda. Inclui lutas na China, Vietnã, Guiné-Bissau, Angola, Irlanda, Burkina Faso, Cuba e muito mais. O que une esses pensadores e movimentos em suas diferenças é o conhecimento da necessidade da revolução, da tomada do Estado e do papel dos camponeses, trabalhadores, mulheres e minorias nacionais. A própria Revolução Russa teria sido impossível sem o desenvolvimento de tal “coalizão dos oprimidos”, como disse Lênin.
Essas coalizões não podem ser presumidas. Elas devem ser compostas em e por meio de lutas compartilhadas, atos de solidariedade e construção do partido. O leninismo climático exige a construção de coalizões entre povos indígenas, trabalhadores do Norte Global, pequenos agricultores e pastores, mulheres, comunidades racializadas e outros grupos oprimidos e explorados, em questões de importância ecológica, econômica e política.
O leninismo climático nos lembra que não podemos — como muitos marxistas fazem — fetichizar o trabalhador industrializado e sindicalizado do Norte Global ou buscar programas nacionais de transição verde sem considerar seu impacto nas terras e no trabalho do Sul Global. Um relatório recente descobriu que a resistência indígena evitou 25% das emissões anuais projetadas dos EUA e do Canadá, o que equivale a aproximadamente quatrocentas novas usinas a carvão. Estima-se que os povos indígenas, que representam cerca de 5% da população mundial, defendem 80% da biodiversidade mundial. O leninista peruano José Carlos Mariátegui compreendeu bem as lutas dos povos indígenas e sua importância para a revolução. Os povos indígenas, argumentou ele, não poderiam reparar sua opressão e o roubo de suas terras por meio de reforma legislativa ou apelo moral. Apenas a socialização massiva dos sistemas de terra e alimentos, guiada pelo “socialismo prático” vivido pelos povos indígenas, seria suficiente.31
Da mesma forma, pequenos agricultores e pastores do Sul Global produzem cerca de um terço dos alimentos do mundo, com insumos de combustíveis fósseis e emissões de carbono muito menores do que a agricultura industrializada, e isso apesar de décadas de intervenções econômicas destinadas a erodir seus modos de vida, conhecimento ecológico prático e direito à terra. Thomas Sankara reconheceu o papel revolucionário dos pequenos agricultores. Imediatamente após chegar ao poder, Sankara proclamou a criação do Conselho Nacional da Revolução e convocou camponeses e trabalhadores a formar Comitês Populares. Os primeiros surgiram em bairros pobres da capital de Burkina Faso, antes de se espalharem para outras cidades e bairros rurais. Estabeleceu-se uma relação de responsabilização e luta compartilhada entre o partido e as organizações democráticas locais. Formou-se uma dialética de transição. Em seu discurso O imperialismo é o incendiário de nossas florestas e savanas, Sankara mostra como a luta anti-imperialista e a luta ecológica são a mesma coisa. Em pouco mais de um mês, o governo de Sankara ministrou cursos básicos de gestão econômica e ambiental para mais de 35.000 camponeses. A Burkina Faso de Sankara também plantou milhões de árvores para conter a ameaça de desertificação, presidiu uma campanha de vacinação e alfabetização bem-sucedida e alcançou enormes aumentos na produtividade agrária e na irrigação. Tudo isso foi possível porque o partido e o povo trabalharam em escala para realizar uma transição revolucionária.
O leninismo climático deve hoje se inspirar nessas lutas. Deve ouvir os signatários do Acordo Popular de Cochabamba e se solidarizar com os apelos em andamento por soberania econômica e alimentar vindos de movimentos camponeses, como a Via Campesina e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil, bem como com os apelos à autodeterminação nacional e pela Devolução da Terra aos Indígenas e povos colonizados em todo o mundo. Tais lutas e suas demandas para se desvincular das divisões globais do trabalho capitalista devem ser o ponto de partida para uma política climática anticapitalista radical, no Norte e no Sul Global. Seguindo pensadores como Max Ajl e Keston Perry, o leninismo climático deve colocar as reparações climáticas e as transferências de tecnologia no centro de seu internacionalismo.
Em um recente boletim de pesquisa da Agrarian South Network, Paris Yeros propôs que os movimentos anticapitalistas do mundo deveriam lutar por uma nova conferência de Bandung. Esta seria “uma frente de solidariedade internacional entre camponeses, trabalhadores e povos” que visaria “reiniciar e reforçar uma transição socialista mundial na primeira metade do século XXI”. O objetivo seria “estabelecer uma estrutura de diálogo sistemático entre movimentos e partidos e fornecer apoio ideológico, político e logístico às lutas à medida que evoluem”.32 De maneira ambiciosa, Yeros convoca um encontro internacional de representantes de partidos socialistas, movimentos de libertação nacional, movimentos sociais de camponeses, de trabalhadores, de indígenas e de outros povos tradicionais, em 2025, “programado para comemorar o 70º aniversário da conferência afro-asiática em Bandung”.
Esta é uma convocação urgente. Ela contém uma teoria leninista climática de transição revolucionária: construção de partidos, anti-imperialismo e uma coalizão global dos oprimidos. Uma COP26 para anti-imperialistas. A mesma forma — transições planetárias, aspirações planetárias — com um conteúdo diferente, revolucionário.
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