Capital racial do pan-africanismo e colonialidade à ruptura epistêmica: Novos rumos em uma vida com o marxismo — Parte 1

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16 min readAug 22, 2022

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por Jesse Benjamin. Publicado em 1º de julho de 2020 em Monthly Review.

Traduzido por Rafael Nolibos. Revisado por Débora Cunha, Rebecca Borges e Rafaela Milara.

A história e a natureza do capitalismo racial permanecem como questões primordiais de nossos tempos. Seu verdadeiro significado e gravidade ameaçam revelar tudo sobre nosso mundo contemporâneo, desde nossos arranjos sociais imediatos até o sistema global. Dentro disso, o poder corporativo e a cultura hegemônica moldam o mundo nos limites de nossas percepções. Como resultado, não é suficiente abordar a história do capital racial apenas da perspectiva da historiografia crítica, embora os contínuos esforços em curso para descolonizar nossa compreensão de suas especificidades e complexidades sejam absolutamente vitais.1 Também é insuficiente simplesmente investigar quão inerentemente entrelaçadas sempre foram as categorias e os processos de raça e classe, tanto na prática do mundo real (especialmente no ponto de produção) quanto epistemicamente, em termos de categorias ocidentais de cognição e organização cognitiva, embora isso também seja absolutamente crítico. Devemos também engajar simultaneamente a política contemporânea de produção de conhecimento em torno dessas questões, tanto na academia quanto na cultura popular.

Ao longo do século XX, a precisão devastadora das análises político-econômicas e de classe levou a sua aceitação cada vez maior, até mesmo a consagração, como um ponto fundamental de análise crítica em muitas disciplinas. Raça e outras questões chamadas de “identitárias” chegaram essencialmente aos campi de maneira muito diferente nos Estados Unidos, em comparação com outras nações onde isso aconteceu apenas recentemente, se é que aconteceu. Por volta de 1968, nos Estados Unidos, Black Power [poder negro] e Black Studies [estudos negros] tornaram a questão racial uma questão importante nos campi. Isso ajudou a abrir espaço para mulheres, latinos, muçulmanos, nativos americanos, membros LGBTQ, ativistas com deficiência e muitas outras comunidades a seguirem o exemplo nos anos subsequentes — embora essas pessoas e áreas de estudo tendessem a ser relegadas a um status periférico ou inferior em termos tanto de bolsa de estudos quanto de estruturas institucionais e disciplinares em desenvolvimento. Elas também estão sujeitas a uma contenção massiva desde a década de 1980. Todas essas perspectivas são necessárias e, juntas, nos ajudam a fundamentar nossas discussões contemporâneas em seu contexto completo.

É impossível separar a importante busca decolonial pela especificidade historiográfica nos entrelaçamentos de raça e classe da política acadêmica, da sociedade ocidental hegemônica mais ampla na qual essas questões estão envolvidas e da política racial em curso dentro da qual o conhecimento é ativamente produzido. É nesses dois níveis que relaciono a questão do capital racial. Apresento uma análise de minhas próprias experiências nos espaços históricos que estudo, a fim de considerar como minha vida e conhecimento foram moldados por contextos históricos locais e imperiais. Nesse sentido, meu próprio pensamento reflete percepções específicas sobre os tempos em que foi produzido. Em última análise, minhas investigações sobre o capital racial derivam da necessidade de uma vida toda de compreender e explicar o mundo ao meu redor, de compreender melhor essa dinâmica e de trabalhar para facilitar a mudança social revolucionária para fazer um mundo melhor.

Brooklyn na década de 1980: contradições da supremacia branca sobre a solidariedade de classe

Muito antes de isso se tornar um sério problema intelectual que eu tenha investigado pessoal e profissionalmente, as questões de classe e raça surgiram como contradições dentro e ao redor da minha vida. No início dos anos 1980, aos 13 anos, me mudei para Crown Heights, Brooklyn. Fui imediatamente confrontado com um racismo antinegro mais escancarado, que ia muito além do que antes se limitava às restrições liberais de negação polida, performances e exibições de invisibilidade racial [colorblindness] e apagamento constante de detalhes ou especificidades raciais reais. Testemunhei diariamente o racismo antinegro extremo entre a maioria dos adeptos das seitas judias ortodoxas e hassídicas que viviam naquela área, o qual estava enraizado no racismo branco generalizado de Nova York naquela época.2 A violência retórica em minhas escolas e entre pessoas que conhecia às vezes explodia em violência física nas ruas.

Esses foram os anos da bolha yuppie pré-crash de Ronald Reagan, sintetizada, para muitos da minha geração, pela arrogância e pela prepotência do personagem principal de Tom Cruise em Top Gun. Em 1984, um vigilante racista no metrô estava sendo muito celebrado pelo que parecia ser metade da cidade. Alguns anos depois, Donald Trump pediu publicamente a execução de adolescentes suspeitos no famoso caso de estupro no Central Park. George H. W. Bush assustadoramente declarou “morte aos traficantes de drogas” em sua convenção de nomeação em 1988. O complexo industrial prisional era o complexo industrial mais novo e de mais rápido crescimento. Por um período de reconhecida invisibilidade racial, a tensão racial e até o racismo fervilhante estiveram por toda parte na cidade de Nova York. Ele permeou a cultura popular como um todo. Gangues de adolescentes racistas e aspirantes a vigilantes armados estavam presentes em meu bairro, e mais gangues armadas sinistras vagavam como forças de segurança autodesignadas. Na época, o programa de rádio de Howard Stern apresentava piadas abertamente racistas todos os dias, que as crianças na escola repetiam e tocavam na hora do almoço.

Aos 15 anos, fui suspenso por uma semana de meu colégio religioso em Washington Heights por me recusar a me retratar por um artigo que havia escrito admirando os princípios de Karl Marx e Friedrich Engels, pelo menos como os entendi nesse primeiro encontro, baseado principalmente em verbetes da enciclopédia e nas páginas iniciais do Manifesto comunista. Nos anos seguintes, em minha busca por uma teoria crítica para explicar o mundo, encontrei, pela primeira vez, as análises de classe, mas essas foram incapazes de explicar, de maneira adequada, o evidente racismo e a violência potencial que eu estava enfrentando na escola e nas ruas próximas ao Eastern Parkway. Eu, portanto, nunca tive muita liberdade para sustentar uma atitude purista, privilegiando a classe sobre a raça, embora, primeiramente, tenha aprendido mais sobre classe do que sobre raça e, provavelmente, no início, tenha mantido certo viés de classe devido à esmagadora precisão e profundidade de Marx e sua obra.

Ao longo dos anos 1980, 1990 e na década de 2000, encontrei essa tensão continuamente na academia, nas organizações de esquerda e nos espaços ativistas. Havia uma orientação consistente e decidida a favor da classe. Frequentemente, praticava-se, de forma aberta, um reducionismo de classe sobre e contra raça ou qualquer outra forma de “identidade”, como gênero, sexualidade ou deficiência. É claro que houve exceções, que comecei a buscar ativamente, mas essa orientação foi e continua sendo a regra. Vivemos em um mundo em que muitos marxistas de vários tipos, com a mais elevada das intenções, há muito, defendem a noção de classe como a unidade primária ou fundamental de análise da qual todas as outras emergem ou descendem, ou emanam secundariamente, como um apêndice; a única identidade universal potencial que pode unir uma porção suficiente das massas para efetuar uma mudança revolucionária.

Intifadas beduínas e fluxos de mão de obra cruzada na Palestina ocupada: entre a Primeira e a Segunda Intifadas

Na primavera de 1987, cheguei a Jerusalém, menos de um ano antes que a primeira Intifada Palestina explodisse na história, abalando a complacência da ocupação perpétua. Desamarrado de ideologias seculares ocidentais herdadas e das novas ideologias religiosas, eu estava preparado para ir mais fundo nas explicações marxistas e em outras explicações radicais sobre o estado do mundo. No Center of Friends World College, em Jerusalém, estudei antropologia, filosofia e marxismo sob uma série de professores progressistas, e ocasionalmente radicais, mergulhados no pensamento dos anos 1960 e 1970. Li o livro devastador de Edward Said, A questão da Palestina, que detalha o teor racial europeu e profundamente colonial do nacionalismo israelense. Sua obra esclareceu toda uma série de mitos codificados em minha subjetividade imperial americana de facto, na qual eu tinha navegado inconscientemente até então. Também li a Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire; Os condenados da terra, de Frantz Fanon; um livro de ensaios de Che Guevara; e outros clássicos fundacionais do pensamento marxista, revolucionário e canônico ocidental. Tudo isso ajudou a orientar os meus estudos e a minha compreensão do capitalismo racial.

Nos anos seguintes, conduzi investigações etnográficas e político-econômicas sobre as lutas de reassentamento forçado enfrentadas por metade das comunidades beduínas em Israel, com casos comparáveis no Egito e na Palestina ocupada. Os fundamentos da economia política eram centrais a cada ponto, mas nunca remotamente desassociados da raça. Os governos colonialistas britânico e israelense, de forma sucessiva, se recusaram a reconhecer os registros de terra da era otomana, os quais mostravam os beduínos como os seres humanos complexos que eles são, é claro. Os beduínos, há muito, praticavam o pastoreio anual de lotes específicos e cultivam wadis e campos.3 Eles construíram casas e comunidades, bem como mesquitas, preservando terrenos ancestrais, poços e bacias de captação de água, cemitérios e até mesmo antiguidades. Entretanto, os governos coloniais, com seu pensamento eurocêntrico compartilhado, consideram o beduíno predominantemente pastoril como próximo ao fundo de sua (imaginária) escala evolucionária de formas culturais.

Os povos beduínos são forçados a entrar em programas de reassentamento militarizados, os quais são redigidos em termos modernizadores e missionários, e terminam em cidades planejadas. Por meio desse processo, eles têm que abrir mão de todas as reivindicações legais às suas terras e são socialmente transformados em proletários, vivendo em prédios de apartamentos voltados a famílias nucleares em vez de suas tradicionais estruturas familiares estendidas do campo.4 Sete cidades beduínas planejadas estão estrategicamente posicionadas bem ao lado das áreas industriais mais tóxicas e remotas de Israel, incluindo indústria nuclear e outras indústrias pesadas. Cerca da metade da população beduína foi removida à força, com grande pressão e violência, para esses guetos planejados.

A outra metade resiste, década após década, se agarrando às suas terras de qualquer maneira possível. O plano do Estado para recondicioná-los como um proletariado rural que vive em grandes complexos de apartamentos em partes remotas do deserto se torna mais violento a cada ano, com demolições de casas no estilo da Cisjordânia. O estado destruiu vilas beduínas inteiras, como Al-Araqib, que se tornou famosa por ter sido demolida e reconstruída mais de 175 vezes por seus dedicados residentes. Desde os anos 1980, essa metade da crescente população beduína do sul de Israel tem se recusado firmemente a abrir mão de suas terras tradicionais e de suas formas culturais, bem como de seus modos de produção baseados na terra. Ter suas terras expropriadas por meios legais é, hoje em dia, uma experiência comum entre as sociedades baseadas na terra, pois o capitalismo se alimenta em uma zona de incorporação de constante expansão. Somente a resistência de pessoas cada vez mais isoladas limita esse roubo.

Entre os judeus em Israel, havia hierarquias de classe profundas e intensas, construídas, em grande parte, em torno de noções europeias de raça que colocavam os Ashkenazim (judeus europeus, ao que tudo indica, culturalmente mais brancos) sempre no topo, os Sephardim (judeus espanhóis, mediterrâneos ou do sul) sempre um degrau abaixo em termos de poder em todos os níveis da sociedade, e depois os Mizrahim (judeus árabes) na base da hierarquia — isto é, até que judeus iemenitas e etíopes ainda mais racializados tivessem chegado em números para ocupar a posição inferior. Os beduínos, como palestinos sujeitos a suas próprias hierarquias internas nas quais os urbanos e camponeses muitas vezes se sentiam superiores, não eram sequer considerados parte da grade de classes israelense. Sua localização racial como “tribal” em seu modo primário de subsistência (pastoreio) os colocou fora da sociedade de muitas maneiras, ou em seu nível mais baixo, uma parte periférica do conjunto sistemicamente ocupado e oprimido dos palestinos como um todo.

Assim, os beduínos não eram os únicos racializados, pois os israelenses também estavam racialmente envolvidos, não sendo apenas atores e exploradores de classe neutros.5 Esse ponto ficou muito claro para mim ao trabalhar com cientistas israelenses no Instituto de Pesquisa Sede Boker Desert. A maioria dos cientistas vivia muito afastada de seus vizinhos beduínos imediatos, que frequentemente eram o foco explícito de suas pesquisas. Isso também era evidente no forte contraste entre os habitantes judeus suburbanos de Be’er Sheva (Bir Saba), com seus gramados de classe média com irrigação automática subsidiada, em comparação às comunidades beduínas inteiras do outro lado das cercas de arame farpado, que dispunham de uma única torneira de água para mais de cem pessoas e trezentos animais.

As comunidades beduínas foram todas rotuladas como ilegais por Israel, de modo que receberam pouco ou nenhum serviço, como escolas e clínicas. Elas não receberam alocações de infraestrutura para água, estradas, eletricidade, banda larga, bombeiros, polícia etc. Essas horrendas manifestações do capital racial, que encontrei pela primeira vez ao trabalhar com líderes e ativistas comunitários beduínos, continuam voláteis e difíceis de discutir, mesmo hoje. Como um adolescente fazendo este trabalho, o racismo sionista e a brancura em Israel tinham chegado a uma clara visão etnográfica, mas tudo isso transcendia a maior parte da aceitabilidade acadêmica. Essa situação se mantém um tanto constante, mesmo que um novo e importante terreno crítico tenha começado a surgir em algumas discussões comunitárias estadunidenses e judaicas sobre Israel, que se concentram em suas alarmantes tendências racistas e fascistas. Quando brevemente abordadas em meios ocidentais, a opressão e as lutas dos beduínos são tratadas em termos a-históricos simples, em geral, com uma projeção romantizada abraâmica baseada em suposições alocrônicas de que os pastores representam um vislumbre literal de tempos antigos. Quase ninguém se envolve com o componente racial da dinâmica de opressão dos palestinos em geral, muito menos com o caso específico dos beduínos Negev/Naqab, que, agora, são considerados uma minoria racial de terceira ou quarta classe dentro de Israel.

Colonialismo, subdesenvolvimento e capitalismo racial entrincheirado na costa do Quênia

No verão de 1990, no início do meu último ano de graduação, cheguei ao Quênia me considerando um cientista social marxista especializado em etnografia. Tinha acabado de escrever meu primeiro trabalho etnográfico completo, um estudo de duzentas páginas sobre a cidade de Dahab, localizada na Península do Sinai, fornecendo uma descrição espessa do turismo barato/hippie, análises fundiárias e trabalhistas da marginalização beduína nas mãos de empresários do Cairo e do vale do Nilo, e uma análise histórica mundial das mudanças econômicas ao longo de três séculos. Agora, eu precisava entender a história político-econômica do Quênia, uma das poucas colônias de colonos brancos na África. Empreguei três dos estudos mais sofisticados e críticos sobre o colonialismo no Quênia disponíveis na época: The Economics of Colonialism: Britain and Kenya, 1870–1930 [A economia do colonialismo: Grã-Bretanha e Quênia, 1870–1930], de Richard D. Wolff; Colonial Capitalism and Labour in Kenya, 1919–1939 [Capitalismo colonial e trabalho no Quênia, 1919–1939], de Roger van Zwanenberg; e o volume materialista Class and Economic Change in Kenya: The Making of an African Petite-Bourgeoisie [Mudanças econômicas e de classe no Quênia: a construção de uma pequena burguesia africana], de Gavin Kitching. Esses tratados político-econômicos igualmente brilhantes trouxeram rigor acadêmico e proporcionaram uma precisão esmagadora às descrição de sistemas coloniais brutais de exploração, cujos vestígios me cercavam. Era tudo muito real e poderoso, mas o impressionante era também que essas economias políticas eram descritas quase que puramente em nível de infraestrutura, olhando para a produção, o trabalho, a tributação forçada, os vieses de exportação do grande latifúndio e o desenvolvimento econômico. Somente no final essas obras se aventuraram a um breve olhar sobre os reinos e as variáveis culturais, que foram claramente considerados como sendo de um status muito menor, derivado. Esses estudos tornaram-se minhas infraestruturas, eu os adotei, pois estavam totalmente corretos no que eles estabeleciam, e pude aplicá-los com especificidade e detalhes atualizados à minha própria esfera de experiência e estudo na costa queniana. Mas eu também tinha plena consciência de que pelo menos metade da história estava faltando.

Cultura, identidade e raça, em geral, vistas como parte da superestrutura, estavam moldando e determinando muitas das dinâmicas sociais críticas que eu observava e experimentava. Esses fatores operavam em tensão com as forças materiais estruturais fundamentais e, às vezes, as contradeterminavam. E, segundo meu trabalho de campo, às vezes até predominavam operativamente. David Parkin, um antropólogo, havia notado essa relação em seu trabalho com as comunidades Mijikenda, na costa. Fred Cooper, em From Slaves to Squatters, destacou tais questões culturais em sua história das comunidades costeiras. Isso espelhava quase perfeitamente o contexto histórico de meu trabalho etnográfico em Shariani, uma aldeia de 4 mil pessoas a cerca de trinta e cinco quilômetros ao norte de Mombaça.

Com base em meu trabalho de campo etnográfico discursivo, escrevi uma tese de 550 páginas, Processes of Change in Shariani, Kenya: Ideological, Institutional and Infrastructural Levels [Processos de mudança em Shariani, Quênia: níveis ideológicos, institucionais e infraestruturais]. Esse trabalho refletia o pensamento marxista mecanicista do período, assim como a influência dos estudiosos marxistas israelenses, palestinos e britânicos que eu havia encontrado. Dividi meu estudo em seções principais: 1) uma história decolonizada; 2) superestrutura: etnia, raça e identidade; 3) estrutura social: geografia, educação, religião e direito; e 4) infraestrutura: trabalho doméstico, divisão de gênero do trabalho e uma análise da terra rastreando todas os lotes conhecidos até a escravidão e sua codificação colonial de 1922–1924 como propriedade privada. Embora a alienação da terra e o consequente aumento da necessidade de trabalho assalariado para sobreviver fossem as principais forças motrizes, havia uma importante determinação multidirecional em relação a cada questão examinada. Por exemplo, enquanto eu estava escrevendo, uma Mesquita se dividiu com base em raça/classe, irrompendo em violência ocasional após um descendente de um antigo grande proprietário de escravos da área ter sido diretamente desafiado por seu racismo. O racismo foi colocado como um veículo primário discursivo e explicativo em todos os lugares onde o poder era expresso, muitas vezes determinando e formando o acesso ao capital, aos recursos e a muitas formas de trabalho.

Enquanto eu estava fazendo trabalho de campo em Israel, no Egito e no Quênia, no final dos anos 1980, os debates acadêmicos da época ainda refletiam os anos 1970, com preocupações em relação à teoria da dependência e se uma abordagem atualizada do modo de produção asiático poderia ser adotada em relação a regiões não ocidentais, como a África. Por meio dos trabalhos de Claude Meillassoux, Jean Suret-Canale, Georges Balandier, Antonio Gramsci, Amílcar Cabral e Catherine Coquery-Vidrovitch, procurei inúmeras maneiras de explorar a cultura mais profundamente dentro do marxismo. Comecei a questionar os modos ocidentais de pensar e escrever sobre a África e o resto do mundo. A lente intelectual através da qual os “modos de produção africanos” completamente distintos poderiam fazer sentido estreitados e esmagados sob o peso de suas próprias suposições eurocêntricas e evolucionistas.

Uma parte importante dessa mudança foi uma séria consideração de Walter Rodney em Como a Europa subdesenvolveu a África. Ele definiu irrevogavelmente a natureza relacional da economia política internacional, a conexão entre subdesenvolvimento e superdesenvolvimento. Os efeitos de seu trabalho não foram assimilados de imediato por muitos na academia, resistentes a suas políticas decoloniais. No entanto, suas implicações foram mais sísmicas, ou temporalmente perturbadoras, pois suas reverberações continuam até hoje. As verdades fundamentais que ele elucidou tornavam-se cada vez mais concretas e visíveis. É um desses fatos incômodos que, uma vez nomeados e vistos, se tornam inegáveis para os honestos, permanecendo, para muitos, como um pesadelo de autoconsciência e responsabilidade política evitada por meio de qualquer artifício, sofisma burguês ou autoengano. Europa e África, o Ocidente e suas antigas (ou atuais) colônias e neocolônias, são fundamentalmente relacionais em vez de unidades de análise separadas.

Com esses insights, ainda era necessário encontrar análises profundas sobre raça e colonialismo, ou sobre o capital racial nesse contexto, bem como um trabalho focado no socialismo africano. Lancei mão de teorias dentro da tradição pan-africana para abordar algumas das principais dinâmicas que estava encontrando no campo.6 Este trabalho ajudou a entender como discursos de respeitabilidade com raízes coloniais foram codificados na escravidão racial de estilo ocidental em Zanzibar e na costa do Quênia, que carregavam toda a sua bagagem epistêmica e racial. A isso se seguiu um período de intenso domínio colonial, que aprofundou e solidificou, em grande parte, o que já era um campo minado de dinâmicas emergentes de identidade de raça/classe, alavancando, de maneira proposital, e, algumas vezes, inventando disputas locais em torno das quais se corrompiam protegidos leais, por meio de sua vontade de explorar seus vizinhos.

Enquanto Cooper oferecia uma historiografia materialista magistral que narrava a continuidade da riqueza e do poder entre os principais períodos históricos na costa da África Oriental, ele apenas abordou, de forma superficial, a dinâmica pivotal e decisiva da identidade. Minha pesquisa indicou que as identidades raciais, após 1830, e suas relações esquemáticas históricas com o poder eram o vetor mais determinante para a previsão de resultados sociais ao longo da costa queniana. Enraizadas em camadas de linguagem e cultura de respeitabilidade baseadas na escravidão, coisas como quem era considerado árabe, muçulmano ou suaíli contra quem era considerado giriama, kauma, digo ou, geralmente, membros da Mijikenda e, portanto, africanos (isto é, “africanos de reserva”, que precisavam de cartões de passe para viajar ou trabalhar sob o domínio colonial) determinavam quem vivia onde, que empregos estavam disponíveis, quem podia e possuía terra e onde. Localizados de forma mais ambígua e sorrateira estavam os muitos descendentes daqueles que haviam sido escravizados (até 1907), a maioria no século XIX, e aqueles que eram, em grande parte, agora aculturados nas comunidades Mijikenda/Swahili, de maioria muçulmana, que se estendem dos extremos rurais aos urbanos, mas, em geral, fora ou na periferia dos centros islâmicos urbanos mais elitizados das grandes cidades históricas.

Notas

  1. Meu próprio trabalho contribui para historiografias corretivas decoloniais, especialmente no que diz respeito à pesquisa focada na cultura e na história da costa oriental da África, do reassentamento forçado de beduínos e dos deslocamentos curdos no Oriente Médio contemporâneo, bem como em questões de raça e racismo na América do Norte.
  2. Mesmo hoje, continua sendo uma coisa sensível para escrever, tão delicadas, complexas e voláteis são as vicissitudes de raça e classe em seus detalhes do mundo real. Na década de 1980, isso era exponencialmente mais difícil de abordar como um tópico em quase qualquer lugar, embora eu saiba que alguns de nós o fizeram de maneiras diferentes. Descobri que sempre há dissidência em comunidades desiguais, se você souber como procurá-la.
  3. Wadis são leitos de rios férteis que retêm água para sustentar árvores, arbustos, grãos e vida selvagem; no entanto, eles estão secos na maior parte do ano, apenas ocasionalmente inundando, às vezes de forma violenta, quando as chuvas caem rio acima algumas vezes por ano.
  4. O singular Bedu significa “da terra”, beduíno significa “povo da terra”.
  5. A marginalização racializada foi uma parte fundamental da opressão beduína sob o colonialismo britânico e, em seguida, o emergente estado israelense, que expulsou cerca de 90% da população beduína do deserto de Naqab (Negev), no sul, em 1948–1949, sujeitando o restante da população à relocação forçada em reservas militares fechadas e à subsequente desapropriação da maioria de suas terras ancestrais. Como consequência das categorias de raça ocidentais sendo introduzidas de forma mais institucional no início do século XX (mas não antes, em minha pesquisa), muitos beduínos começaram a adotar internamente atitudes raciais antinegras mais amplas e categorias contra membros de sua própria comunidade que tinham ligações mais diretas ou visíveis com ancestrais negros ou africanos, agora muitas vezes simplificadas demais como uma referência para a escravidão ou a capacidade de escravidão.
  6. Estou pensando aqui, principalmente, em Kwame Nkrumah, Julius Nyerere, Walter Rodney, Ngugi wa Thiong’o, Okot p’Bitek, os quais se tornaram centrais para a teoria do meu trabalho, embora a lista seja realmente longa; e o Quênia também foi onde um colega estudante me apresentou a Audre Lorde, um grande evento.

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