A Visão de Marx de Desenvolvimento Humano Sustentável — parte 2

Leia Marxistas
21 min readJun 8, 2021

--

Por Paul Burkett. Texto publicado em 01 de outubro de 2005 via Monthly Review

Traduzido por Lucas Chagas. Revisado por Débora Cunha.

2. Comunismo, Ecologia e Sustentabilidade de Marx

Muitos questionaram a praticidade econômica do comunismo como projetado por Marx. Poucos abordaram a dimensão do desenvolvimento humano da visão de Marx, sendo uma grande exceção aqueles críticos que argumentam que ela ancora o desenvolvimento humano livre na dominação tecnológica humana e no abuso da natureza, com os recursos naturais vistos como efetivamente ilimitados. É útil abordar essa dimensão ambiental em três níveis: (1) a responsabilidade do comunismo em administrar o uso das condições naturais; (2) a importância ecológica do tempo livre expandido; (3) o crescimento da riqueza e o uso do tempo de trabalho como medida do custo de produção.

A. Gerenciando Os Comuns Comunalmente

Que a sociedade comunista possa ter um forte compromisso de proteger e melhorar as condições naturais pode parecer surpreendente, dada a sabedoria convencional de que Marx presumia que os “recursos naturais” eram “inesgotáveis” e, portanto, não via necessidade de “um socialismo que preservasse o meio ambiente, ecologicamente consciente, e com compartilhamento de emprego [employment-sharing]”. Marx evidentemente presumiu que “recursos escassos (petróleo, peixe, minério de ferro, meias, ou o que quer que seja)… não seriam escassos” sob o comunismo. A sabedoria convencional argumenta ainda que a “fé de Marx na capacidade de um modo de produção aprimorado para erradicar a escassez indefinidamente” significa que sua visão comunista não fornece “nenhuma base para reconhecer qualquer interesse na libertação da natureza” da “dominação humana” antiecológica. É dito que o otimismo tecnológico de Marx — sua “fé na dialética criativa” — descarta qualquer preocupação com a possibilidade de que “a tecnologia moderna interagindo com o ambiente físico da terra possa desequilibrar toda a base da civilização industrial moderna.”

Na realidade, Marx estava profundamente preocupado com a tendência do capitalismo de “minar as fontes originais de toda a riqueza: o solo e o trabalhador”. E ele enfatizou repetidamente o imperativo para a sociedade pós-capitalista de administrar seu uso das condições naturais de forma responsável. Isso ajuda a explicar sua insistência na extensão da propriedade comunal à terra e outras “fontes de vida”. Na verdade, Marx criticou fortemente o Programa de Gotha por não deixar “suficientemente claro que a terra está incluída nos instrumentos de trabalho” neste contexto. Na visão de Marx, a “Associação, aplicada à terra,… restabelece, agora de forma racional, não mais mediada pela servidão, soberania e o tolo misticismo da propriedade [privada], os laços íntimos do homem com a terra, já que a terra deixa de ser objeto de barganha”. Tal como acontece com outros meios de produção, esta “propriedade comum” da terra “não significa a restauração da antiga propriedade comum original, mas a instituição de uma forma de posse em comum muito mais elevada e desenvolvida32”.

Marx não vê essa propriedade comunal conferindo o direito de superexplorar a terra e outras condições naturais para atender às necessidades de produção e consumo dos produtores associados. Em vez disso, ele prevê um eclipse das noções capitalistas de propriedade da terra por um sistema comunitário de direitos e responsabilidades do usuário:

Do ponto de vista de uma forma econômica superior de sociedade, a propriedade privada do globo por indivíduos únicos parecerá tão absurda quanto a propriedade privada de um homem por outro. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou mesmo todas as sociedades existentes simultaneamente em conjunto, não são os donos do globo. Eles são apenas seus possuidores, seus usufrutuários e, como boni patres familias, devem transmiti-lo às gerações seguintes em uma condição melhor23.

A projeção de Marx da propriedade fundiária comunal claramente não conota um direito dos “proprietários” (tanto os indivíduos quanto a sociedade como um todo) ao uso irrestrito com base na “posse”. Em vez disso, como toda propriedade comunal na nova união, confere o direito de utilizar responsavelmente a terra como uma condição de desenvolvimento humano livre e, na verdade, como uma fonte básica (junto com o trabalho) de “toda a gama de necessidades permanentes de vida exigidas pela cadeia de gerações sucessivas”. Como diz Marx, a associação trata “o solo como propriedade comunal eterna, condição inalienável para a existência e reprodução de uma cadeia de gerações sucessivas da raça humana34”.

Por que os críticos ecológicos perderam esse elemento crucial da visão de Marx? A resposta pode estar na influência contínua dos chamados modelos de “tragédia dos comuns”, que (erroneamente) identificam a propriedade comum com o “acesso aberto” descontrolado aos recursos naturais por usuários independentes. Na realidade, a dinâmica postulada por esses modelos tem mais em comum com a anarquia da competição capitalista do que com a visão de Marx dos direitos e responsabilidades comunais em relação ao uso das condições naturais. De fato, a capacidade dos sistemas tradicionais de propriedade comunal de utilizar de forma sustentável os recursos de uso comum tem sido objeto de um crescente corpo de pesquisas nos últimos anos. Esta pesquisa, sem dúvida, apoia o potencial de gestão ecológica por meio de uma “comunalização” das condições naturais na sociedade pós-capitalista35.

A ênfase de Marx na responsabilidade da sociedade futura para com a terra segue de sua projeção da unidade inerente da humanidade e da natureza sendo realizada tanto consciente quanto socialmente sob o comunismo. Para Marx e Engels, as pessoas e a natureza não são “duas ‘coisas’ separadas”, portanto, eles falam da humanidade tendo “uma natureza histórica e uma história natural”. Eles observam como a natureza extra-humana foi grandemente alterada pela produção e desenvolvimento humanos, de modo que “a natureza que precedeu a história humana… hoje não existe mais”, mas também reconhecem a importância contínua dos “instrumentos naturais de produção” por cujo uso “os indivíduos são subservientes à natureza”. O comunismo, longe de romper ou tentar superar a unidade necessária das pessoas e da natureza, torna esta unidade mais transparente e a coloca a serviço de um desenvolvimento sustentável das pessoas como seres naturais e sociais. Engels, portanto, visualiza a sociedade futura como uma na qual as pessoas “não apenas sentirão, mas também conhecerão sua unidade com a natureza”. Marx chega a definir o comunismo como “a unidade do ser do homem com a natureza36”.

Naturalmente, ainda será necessário para a sociedade comunista “lutar com a Natureza para satisfazer [seus] desejos, para manter e reproduzir a vida”. Marx, portanto, se refere “aos produtores associados regulando racionalmente seu intercâmbio com a natureza, colocando-a sob seu controle comum”. Tal regulação racional ou “real domínio consciente da Natureza” presume que os produtores “se tornaram donos de sua própria organização social37”. Mas não presume que a humanidade superou todos os limites naturais; nem presume que os produtores tenham alcançado o controle tecnológico completo sobre as forças naturais.

Por exemplo, Marx vê os produtores associados reservando uma parte do produto excedente como uma “reserva ou fundo de seguro para fornecer contra desventuras, distúrbios por meio de eventos naturais, etc.” especialmente na agricultura. As incertezas relacionadas com as condições naturais de produção (“destruição causada por fenômenos extraordinários da natureza, incêndio, inundação, etc.”) devem ser tratadas por meio de “uma superprodução relativa contínua”, ou seja, “produção em maior escala do que o necessário para a simples substituição e reprodução da riqueza existente”. Mais especificamente, “Deve haver, por um lado, uma certa quantidade de capital fixo produzido além do que é diretamente necessário; por outro lado, e particularmente, deve haver um suprimento de matérias-primas, etc., além das necessidades anuais diretas (isso se aplica especialmente aos meios de subsistência)”. Marx também prevê um “cálculo de probabilidades” para ajudar a garantir que a sociedade “esteja de posse dos meios de produção necessários para compensar a destruição extraordinária causada por acidentes e forças naturais38”.

Obviamente, “esse tipo de superprodução equivale ao controle da sociedade sobre os meios materiais de sua própria reprodução” apenas no sentido de uma regulação previdente dos intercâmbios produtivos entre a sociedade e as condições naturais incontroláveis. É nesse sentido prudencial que Marx prevê que os produtores associados “dirijam a produção desde o início, de modo que o suprimento anual de grãos dependa apenas minimamente das variações do clima; a esfera da produção — os aspectos de fornecimento e uso — é racionalmente regulada.” É simplesmente sensato que “os próprios produtores… gastem uma parte de seu trabalho, ou dos produtos de seu trabalho, para assegurar seus produtos, sua riqueza ou os elementos de sua riqueza, contra acidentes, etc.” “Dentro da sociedade capitalista”, ao contrário, as condições naturais incontroláveis ​​conferem um “elemento de anarquia” desnecessário à reprodução social39.

Contradizendo seus críticos ecológicos, Marx e Engels simplesmente não identificam o desenvolvimento humano livre com uma dominação humana unilateral ou controle da natureza. De acordo com Engels,

A liberdade não consiste no sonho da independência das leis naturais, mas no conhecimento dessas leis e na possibilidade que isso dá de fazê-las sistematicamente trabalharem para fins definidos. Isso é válido tanto em relação às leis da natureza externa quanto àquelas que governam a existência física e mental dos próprios homens — duas classes de leis que podemos separar uma da outra, no máximo, apenas em pensamento, mas não na realidade… Liberdade, portanto consiste no controle sobre nós mesmos e sobre a natureza externa que se baseia na necessidade natural.

Em suma, Marx e Engels imaginam uma “verdadeira liberdade humana” baseada em “uma existência em harmonia com as leis estabelecidas da natureza40”.

B. Tempo Livre Expandido e Desenvolvimento Humano Sustentável

Os críticos ecológicos de Marx frequentemente argumentam que sua visão de tempo livre expandido sob o comunismo é antiecológica porque incorpora uma ética de autorrealização humana por meio da superação de restrições naturais. Routley, por exemplo, sugere que Marx adota “a visão do trabalho de subsistência [bread labor] como necessariamente alienado e, portanto, como algo a ser reduzido a um mínimo absoluto por meio da automação. O resultado deve ser altamente intensivo em energia e, portanto, dado qualquer cenário de energia realista e previsível, prejudicial ao meio ambiente”. Para Marx, evidentemente, “é o fato de que o trabalho de subsistência vincula o homem à natureza que torna impossível que ele expresse o que é verdadeira e plenamente humano; assim, é apenas quando o homem supera a necessidade de gastar tempo com trabalho de subsistência que ele ou ela pode ser considerado como tendo dominado a natureza e se tornado totalmente humano”. Menos dramaticamente, Walker aponta para uma tensão entre a visão de Marx de expandir o tempo livre, que “claramente implica que deve haver recursos além daqueles necessários para um mínimo de sobrevivência”, e a suposta falha de Marx em “mencionar… limitações na disponibilidade natural recursos41”.

A discussão anterior já fez muito para dissipar as noções de que Marx e Engels não estavam preocupados com o manejo dos recursos naturais sob o comunismo e que previram uma separação progressiva do desenvolvimento humano da natureza como tal. No entanto, também deve ser apontado que os críticos ecológicos caracterizaram erroneamente a relação entre tempo livre e tempo de trabalho no comunismo. É verdade que, para Marx, o “desenvolvimento da energia humana que é um fim em si mesmo… está além da esfera real da produção material”, isto é, além do “trabalho que é determinado pela necessidade e por considerações mundanas”. Mas para Marx, este “verdadeiro reino da liberdade… pode florescer apenas com [o] reino da necessidade como sua base,” e a relação entre os dois reinos não é de forma alguma uma simples oposição, como alegado pelos críticos ecológicos. Como diz Marx, o “caráter bastante diferente… livre” do trabalho diretamente associado, onde “o tempo de trabalho é reduzido a uma duração normal e, além disso, o trabalho não é mais [do ponto de vista dos produtores como um todo] realizado para um outro alguém”, significa que “o próprio tempo de trabalho não pode permanecer na antítese abstrata do tempo livre em que aparece da perspectiva da economia burguesa”:

O tempo livre — que é tanto tempo ocioso quanto tempo para atividades superiores — naturalmente transformou seu possuidor em um sujeito diferente, e ele então entra no processo de produção direta como esse sujeito diferente. Esse processo é, então, ao mesmo tempo, disciplina, no que diz respeito ao ser humano em processo de devir; e, ao mesmo tempo, prática, ciência experimental, ciência materialmente criativa e objetivadora, no que diz respeito ao ser humano que se tornou, em cuja cabeça está o conhecimento acumulado da sociedade42.

*Nota do tradutor: Bread labor, conceito formulado por Leo Tolstoy, significa que “cada indivíduo deve trabalhar o suficiente para seu manter sustento, e suas faculdades intelectuais devem ser exercidas não a fim de ganhar a vida ou acumular uma fortuna, mas apenas no serviço da humanidade”.

Na visão de Marx, o aumento do desenvolvimento humano livre por meio de reduções no tempo de trabalho ressoa positivamente com o desenvolvimento das capacidades humanas no reino da produção, que ainda aparece como um “metabolismo” da sociedade e da natureza. As ênfases de Marx na educação “teórica e prática” e na desalienação da ciência vis-à-vis os produtores são bastante relevantes neste contexto. Marx vê a difusão e o desenvolvimento do conhecimento científico pelo comunismo tomando a forma de novas combinações das ciências naturais e sociais, observando que

a ciência natural… se tornará a base da ciência humana, como já se tornou a base da vida humana real, embora de forma afastada. Uma base para a vida e outra base para a ciência são, a priori, uma mentira… A ciência natural, com o tempo, incorporará em si a ciência do homem, assim como a ciência do homem incorporará em si a ciência natural: haverá uma única ciência43.

Essa unidade intrínseca das ciências sociais e naturais é, naturalmente, um corolário lógico da unidade intrínseca da humanidade e da natureza. Consequentemente, Marx e Engels “conhecem apenas uma única ciência, a ciência da história. Pode-se olhar a história por dois lados e dividi-la em história da natureza e história dos homens. Os dois lados são, no entanto, inseparáveis; a história da natureza e a história dos homens dependem uma da outra enquanto os homens existirem44”.

Em suma, os fundadores do Marxismo não previram a redução do tempo de trabalho do comunismo em termos de uma separação progressiva do desenvolvimento humano da natureza. Eles também não viram o tempo livre expandido sendo preenchido por orgias de consumo pelo consumo. Em vez disso, a redução do tempo de trabalho é vista como uma condição necessária para o desenvolvimento intelectual de indivíduos sociais capazes de dominar as forças cientificamente desenvolvidas da natureza e do trabalho social de maneira ambientalmente e também humanamente racional. O “aumento do tempo livre” aparece aqui como “tempo de pleno desenvolvimento do indivíduo” capaz de “a apreensão de sua própria história como processo, e o reconhecimento da natureza (igualmente presente como poder prático sobre a natureza) como seu real corpo.” O desenvolvimento intelectual dos produtores durante o tempo livre e o tempo de trabalho é claramente central para o processo pelo qual o “caráter social [do trabalho comunista] é posto… no processo de produção não de uma forma meramente natural e espontânea, mas como uma atividade que regula todas as forças da natureza45”. Longe de ser antiecológico, nesse processo os produtores e suas comunidades passam a ter uma consciência mais teórica e prática da riqueza natural como condição eterna de produção, tempo livre e da própria vida humana.

Os críticos ecológicos também parecem ter perdido de vista o potencial de aumento do tempo livre como meio de reduzir a pressão da produção sobre o ambiente natural. Especificamente, o aumento da produtividade do trabalho social não precisa aumentar o rendimento de material e energia, na medida em que os produtores são compensados ​​por reduções no tempo de trabalho em vez de pelo maior consumo de materiais. No entanto, este aspecto do tempo livre como uma medida de riqueza é melhor localizado no contexto da transformação das necessidades humanas pelo comunismo.

C. Riqueza, necessidades humanas e custo da força de trabalho

Alguns argumentariam que, na medida em que Marx imagina o comunismo encorajando um senso compartilhado de responsabilidade para com a natureza, essa responsabilidade permanece ligada a uma concepção antiecológica da natureza como primariamente um instrumento ou material do trabalho humano. Alfred Schmidt, por exemplo, sugere que “quando Marx e Engels reclamam do roubo profano da natureza, eles não estão preocupados com a própria natureza, mas com considerações de utilidade econômica”. Routley afirma que, para Marx, “a natureza deve ser aparentemente respeitada na medida, e apenas na medida, que se torna obra do homem, seu artefato e autoexpressão, e é, portanto, um reflexo do homem e parte da identidade do homem46”.

Deve ficar claro a partir de nossa discussão anterior que qualquer dicotomia entre “utilidade econômica” e “a própria natureza” é completamente estranha ao materialismo de Marx. Um ponto relacionado é que a concepção de Marx de riqueza ou valor de uso abrange “a variedade multifacetada de necessidades humanas”, sejam essas necessidades físicas, culturais ou estéticas. Neste sentido amplo de desenvolvimento humano, “valor de uso… pode geralmente ser caracterizado como o meio de vida”. David Pepper conclui acertadamente que “Marx realmente via o papel da natureza como ‘instrumental’ para os humanos, mas para ele o valor instrumental… incluía a natureza como uma fonte de valor estético, científico e moral47”.

Por “obra do homem”, Marx não emprega uma concepção oposicionista de trabalho e natureza em que o primeiro apenas inclui a última. Ele insiste que a capacidade humana de trabalhar, ou força de trabalho, é em si “um objeto natural, uma coisa, embora uma coisa viva e consciente”, portanto, o trabalho é um processo no qual o trabalhador “se opõe à Natureza sendo uma de suas próprias forças e “se apropria das produções da Natureza de uma forma adaptada aos seus próprios desejos”. Marx vê o trabalho como “um processo do qual o homem e a Natureza participam… a condição necessária para efetuar a troca de matéria entre o homem e a Natureza” na produção. Como uma “condição universal para a interação metabólica entre a natureza e o homem”, o trabalho é “uma condição natural da vida humana… independente de, igualmente comum a, todas as formas sociais particulares de vida humana”. O trabalho é, obviamente, apenas parte do “metabolismo universal da natureza” e, como um materialista, Marx insiste que “a terra… existe independentemente do homem”. Nesse sentido ontológico, “a prioridade da natureza externa permanece incontestável”, embora Marx insista na importância das relações sociais na estruturação do “metabolismo” produtivo entre a humanidade e a natureza48.

Mas o que dizer das notórias referências de Marx e Engels ao crescimento contínuo da produção de riqueza sob o comunismo? Não são imanentemente antiecológicos? Aqui deve ser enfatizado que essas projeções de crescimento são sempre feitas em estreita conexão com a visão de Marx de um desenvolvimento humano livre e completo, não com o crescimento da produção e do consumo materiais para seu próprio bem. Assim, sempre se referem ao crescimento da riqueza em um sentido geral, abrangendo a satisfação de necessidades outras que não aquelas que requerem o processamento industrial de recursos naturais (produção de matéria e energia). Ao discutir a “fase superior da sociedade comunista”, por exemplo, Marx torna a frase “a cada um de acordo com suas necessidades” critério condicional a uma situação em que “a subordinação escravizante de indivíduos sob divisão de trabalho e, com isso, também a antítese entre o trabalho mental e físico desapareceu; depois que o trabalho, de um mero meio de vida, tornou-se ele mesmo a necessidade primária da vida; depois que as forças produtivas também aumentaram com o desenvolvimento integral do indivíduo”. Da mesma forma, Engels se refere a “um crescimento praticamente ilimitado da produção”, mas então preenche sua concepção de “prático” em termos da prioridade “de garantir para cada membro da sociedade… uma existência que não é apenas totalmente suficiente a partir de um ponto de vista material… mas também lhes garante o desenvolvimento totalmente irrestrito de suas faculdades físicas e mentais49”. Esse desenvolvimento humano não precisa envolver um crescimento ilimitado do consumo material.

Para Marx, a “expansão progressiva do processo de reprodução” do comunismo abrange todo o “processo vivo da sociedade de produtores” e, como discutido anteriormente, ele especifica as “vantagens materiais e intelectuais” deste “desenvolvimento social” em termos de desenvolvimento humano holístico. Quando Marx e Engels concebem o comunismo como “uma organização de produção e intercâmbio que tornará possível a satisfação normal das necessidades… limitada apenas pelas próprias necessidades”, eles não significam uma saciedade completa de necessidades em expansão ilimitada de todos os tipos:

A organização comunista tem um efeito duplo sobre os desejos produzidos no indivíduo pelas relações atuais; alguns desses desejos — a saber, os desejos que existem sob todas as relações e apenas mudam sua forma e direção sob diferentes relações sociais — são meramente alterados pelo sistema social comunista, pois têm a oportunidade de se desenvolverem normalmente; mas outros — a saber, aqueles originários unicamente de uma sociedade particular, sob condições particulares de produção e intercâmbio — estão totalmente privados de suas condições de existência. O que será meramente mudado e o que será eliminado em uma sociedade comunista só pode ser determinado de maneira prática50.

Como Ernest Mandel aponta, esta abordagem de desenvolvimento social e humano para a satisfação de necessidades é bastante diferente da “noção absurda” de “abundância” irrestrita muitas vezes atribuída a Marx, isto é, “um regime de acesso ilimitado a um suprimento ilimitado de todos os bens e serviços.” Embora a satisfação das necessidades comunistas seja consistente com uma “definição de abundância [como] saturação da demanda”, isso deve ser localizado no contexto de uma hierarquia de “necessidades básicas, necessidades secundárias, que se tornam indispensáveis ​​com o crescimento da civilização, e luxo, necessidades não essenciais ou mesmo prejudiciais”. A visão do desenvolvimento humano de Marx prevê basicamente uma saciedade das necessidades básicas e uma extensão gradual dessa saciedade às necessidades secundárias à medida que elas se desenvolvem socialmente por meio do tempo livre expandido e do controle cooperativo da comunidade de trabalhadores sobre a produção — não uma saciedade completa de todas as necessidades concebíveis51.

Aqui, começa-se a ver todo o significado ecológico do tempo livre como medida da riqueza comunista. Especificamente, se as necessidades secundárias desenvolvidas e satisfeitas durante o tempo livre são menos intensivas em material e energia, seu peso crescente nas necessidades totais deve reduzir a pressão da produção em condições naturais limitadas. Isso é crucial na medida em que a visão de Marx faz com que os produtores usem sua segurança material recém-descoberta e tempo livre expandido para se envolver em uma variedade de formas intelectuais e estéticas de autodesenvolvimento52. Tal desenvolvimento de necessidades secundárias deve ser ampliado pelas maiores oportunidades que o controle verdadeiramente exercido pelo trabalhador e pelacomunidade oferece às pessoas para que se tornem participantes informados da vida econômica, política e cultural.

Claro, o trabalho (junto com a natureza) continua sendo uma fonte fundamental de riqueza sob o comunismo. Isso, junto com a prioridade da ampliação do tempo livre, significa que as quantidades de trabalho social despendidas na produção de diferentes bens e serviços ainda serão uma medida importante de seu custo. Como Marx explica no Grundrisse:

Com base na produção comunal, a determinação do tempo permanece, é claro, essencial. Quanto menos tempo a sociedade necessita para produzir trigo, gado etc., mais tempo ela ganha para outra produção, material ou mental. Assim como no caso de um indivíduo, a multiplicidade de seu desenvolvimento, seu gozo e sua atividade dependem da economia do tempo. Economia de tempo, a isso toda economia se reduz em última instância. Da mesma forma, a sociedade deve distribuir seu tempo de maneira proposital, a fim de alcançar uma produção adequada às suas necessidades globais; assim como o indivíduo deve distribuir seu tempo corretamente para adquirir conhecimentos em proporções adequadas ou para satisfazer as diversas demandas de sua atividade. Assim, a economia de tempo, junto com a distribuição planejada do tempo de trabalho entre os vários ramos de produção, continua sendo a primeira lei econômica na base na produção comunal. Lá se torna lei em um grau ainda mais alto.

Marx adiciona imediatamente, no entanto, que a economia de tempo do comunismo “é essencialmente diferente de uma medição dos valores de troca (trabalho ou produtos) pelo tempo de trabalho.” Em primeiro lugar, o uso do tempo de trabalho pelo comunismo como uma medida de custo “é realizado… pelo controle direto e consciente da sociedade sobre seu tempo de trabalho — o que só é possível com propriedade comum”, ao contrário da situação sob o capitalismo, onde a “regulação” do tempo de trabalho social só é realizada indiretamente, “pelo movimento dos preços das mercadorias”. Mais importante ainda, a economia de tempo de trabalho do comunismo serve ao valor de uso, especialmente a expansão do tempo livre, enquanto a economia de tempo do capitalismo é voltada para aumentar o tempo de mais-trabalho despendidopelos produtores53.

Além disso, Marx e Engels não projetam o tempo de trabalho como o único guia para as decisões de alocação de recursos no comunismo: eles apenas indicam que deve ser uma medida importante dos custos sociais de diferentes tipos de produção. Que “a produção… sob o controle real e predeterminante da sociedade… estabeleça uma relação entre o volume de trabalho social aplicado na produção de artigos definidos e o volume do desejo social a ser satisfeito por esses artigos” de forma alguma implica que os custos ambientais são deixados de fora da conta. Da mesma forma, não impede que a manutenção e a melhoria das condições naturais sejam incluídas nas “necessidades sociais a serem satisfeitas” pela produção e pelo consumo54.

Para fortes evidências de que Marx e Engels não viam o comunismo priorizando o custo mínimo do trabalho em relação às metas ecológicas, basta apontar a sua insistência na “abolição da antítese entre cidade e campo” como “uma necessidade direta de… produção e, além disso, da saúde pública”. Observando as concentrações urbanas ecologicamente perturbadoras das indústrias e população no capitalismo, a agricultura industrializada e a falha em reciclar resíduos humanos e de animais da pecuária, Marx e Engels apontaram desde o início a “abolição da contradição entre a cidade e o campo” como “uma das primeiras condições da vida comunal”. Como Engels disse mais tarde: “O atual envenenamento do ar, da água e da terra só pode ser eliminado pela fusão da cidade e do campo” sob “um único plano vasto”. Apesar de seu custo potencial para a sociedade em termos de aumento do tempo de trabalho, ele via essa fusão como “nem mais e nem menos utópica do que a abolição da antítese entre capitalista e trabalhadores assalariados”. Era até mesmo “uma demanda prática da produção industrial e agrícola”. Em sua magnum opus, Marx previu o comunismo forjando uma “síntese superior” do “antigo vínculo de união que mantinha unidas a agricultura e a manufatura em sua infância”. Essa nova união trabalharia para uma “restauração” das “condições naturalmente cultivadas para a manutenção de [a] circulação da matéria… sob uma forma apropriada para o pleno desenvolvimento da raça humana.” Consequentemente, Engels ridicularizou a projeção de Dühring “de que a união entre a agricultura e a indústria será realizada mesmo contra considerações econômicas, como se isso fosse algum sacrifício econômico!55” É óbvio que Marx e Engels aceitariam de bom grado aumentos no tempo de trabalho social em troca de uma produção ecologicamente mais sólida.

Ainda assim, não é necessário aceitar a noção, repetida ad nauseam pelos críticos ecológicos de Marx, de uma oposição inerente entre reduções de custos do trabalho e respeito ao meio ambiente. O comunismo de Marx dispensaria o desperdício de recursos naturais e também de trabalho associado ao “sistema anárquico de competição” e “grande número de empregos… em si supérfluos” do capitalismo. Muitos valores de uso antiecológicos poderiam ser eliminados ou largamente reduzidos sob um sistema planejado de alocação de trabalho e uso da terra, entre eles publicidade, processamento e acondicionamento excessivos de alimentos e outros bens, obsolescência planejada de produtos e automóveis. Todos esses valores de uso destrutivos são “indispensáveis” para o capitalismo; mas do ponto de vista da sustentabilidade ambiental representam “o mais ultrajante desperdício da força de trabalho e dos meios sociais de produção56”.

Para mais links relacionados a esse texto, ver a publicação original.

Essa tradução foi possível graças às contribuições feitas pelo Apoia.se. Se você puder e quiser colaborar, é só clicar no banner abaixo.

©Leia Marxistas (2021). Todos os direitos reservados (sobre a tradução). Reprodução somente com autorização prévia do Coletivo Leia Marxistas e com referência da fonte original da tradução.

Notas

31. Alec Nove, “Socialism,” em The New Palgrave: Problems of the Planned Economy, ed. John Eatwell, Murray Milgate e Peter Newman (New York: Norton, 1990), 230, 237; Alec Nove, The Economics of Feasible Socialism (London: Allen & Unwin, 1983), 15–6; Geoffrey Carpenter, “Redefining Scarcity: Marxism and Ecology Reconciled,” Democracy & Nature 3, no. 3 (1997), 140; Andrew McLaughlin, “Ecology, Capitalism, and Socialism,” Socialism and Democracy, no. 10 (Spring–Summer 1990), 95; Lewis S. Feuer, “Introduction,” em Karl Marx and Frederick Engels: Basic Writings on Politics and Philosophy, ed. Lewis Feuer (Garden City, N.Y.: Anchor Books, 1989), xii.

32. Marx, Capital, 1:507; Critique of the Gotha Programme, 5–6; Economic and Philosophical Manuscripts of 1844 (New York: International Publishers, 1964), 103; Engels, Anti-Dühring, 151.

33. Marx, Capital, 3:776.

34. Marx, Capital, 617, 812 (ênfase adicionada).

35. H. Scott Gordon, “The Economic Theory of a Common Property Resource: The Fishery,” Journal of Political Economy 62, no. 2 (Abril 1954); Garrett Hardin, “The Tragedy of the Commons,” Science 162 (Dezembro 1968); S. V. Ciriacy-Wantrup e Richard C. Bishop, “‘Common Property’ as a Concept in Natural Resource Policy,” Natural Resources Journal 15, no. 4 (Outubro 1975); James A. Swaney, “Common Property, Reciprocity, and Community,” Journal of Economic Issues 24, no. 2 (Junho 1990); Elinor Ostrom, Governing the Commons (Cambridge: Cambridge University Press, 1990); Peter Usher, “Aboriginal Property Systems in Land and Resources,” em Green On Red: Evolving Ecological Socialism, ed. Jesse Vorst, Ross Dobson e Ron Fletcher (Winnipeg: Fernwood Publishing, 1993); Burkett, Marx and Nature, 246–8; Robert Biel, The New Imperialism (London: Zed Books, 2000), 15–8, 98–101.

36. Marx e Engels, The German Ideology, 45–6, 71; Frederick Engels, Dialectics of Nature (Moscow: Progress Publishers, 1964), 183; Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844, 137.

37. Marx, Capital, 3:820; Engels, Anti-Dühring, 309.

38. Marx, Critique of the Gotha Programme, 7; Capital, 2:177, 469.

39. Marx, Capital, 2:469; “Notes on Wagner,” in Texts on Method, ed. Terrell Carver (Oxford, UK: Blackwell, 1975), 188; Theories of Surplus Value, part 3, 357–8.

40. Engels, Anti-Dühring, pp. 125–6.

41. Routley, “On Karl Marx as an Environmental Hero,” 242; Walker, “Ecological Limits and Marxian Thought,” 242–3.

42. Marx, Capital, 3:820; Theories of Surplus Value, parte 3, 257; Grundrisse, 712.

43. Marx, Economic and Philosophical Manuscripts of 1844, 143 (ênfase no original).

44. Marx e Engels, The German Ideology, 34. Ver também Ollman, “Marx’s Vision of Communism,” 76.

45. Marx, Grundrisse, 542, 612 (ênfase no original).

46. Alfred Schmidt, The Concept of Nature in Marx (London: New Left Books, 1971), 155; Routley, “On Karl Marx as an Environmental Hero,” 243 (ênfase no original).

47. Marx, Grundrisse, 527; “Economic Manuscript of 1861–63, Third Chapter,” em Collected Works, Karl Marx e Frederick Engels, vol. 30 (New York: International Publishers, 1988), 40 (ênfase no original); David Pepper, Eco-Socialism (London: Routledge, 1993), 64.

48. Marx, Capital, 1:177, 183–4, 202 (ênfase adicionada); “Economic Manuscript of 1861–63, Third Chapter,” 63; Marx and Engels, The German Ideology, 46. Para detalhes sobre a concepção dialética de Marx do trabalho humano e da natureza, ver Burkett, capítulos 2–4 em Marx and Nature; John Bellamy Foster, Marx’s Ecology: Materialism and Nature (New York: Monthly Review Press, 2000); John Bellamy Foster ePaul Burkett, “The Dialectic of Organic/Inorganic Relations: Marx and the Hegelian Philosophy of Nature,” Organization & Environment 13, no. 4 (Dezembro 2000).

49. Marx, Critique of the Gotha Programme, 10; Engels, Anti-Dühring, 309.

50. Capital, 3:250, 819 (ênfase no original); Marx and Engels, The German Ideology, 273.

51. Ernest Mandel, Power and Money: A Marxist Theory of Bureaucracy (London: Verso, 1992), 205–7 (emphasis in original); Howard J. Sherman, “The Economics of Pure Communism,” Review of Radical Political Economics 2, no. 4 (Inverno 1970).

52. Marx, Grundrisse, 287; Marx and Engels, The German Ideology, 53.

53. Marx, Grundrisse, 172–3, 708; Marx to Engels, Janeiro 8, 1868, in Selected Correspondence, Karl Marx and Frederick Engels (Moscow: Progress Publishers, 1975), 187; Marx, Capital, 1:71 and 3:264.

54. Marx, Capital, 3:187.

55. Engels, Anti-Dühring, 323–4 (ênfase no original); The Housing Question, 92; Marx e Engels, The German Ideology, 72; Marx, Capital, 1:505–6.

56. Marx, Capital, 1:530. Para maiores discussões sobre planejamento socialista, tecnologia e eficiência ecológica, ver Victor Wallis, “Socialism, Ecology, and Democracy: Toward A Strategy of Conversion,” Monthly Review 44, no. 2 (Junho 1992); “Technology, Ecology, and Socialist Renewal,” Capitalism, Nature, Socialism 12, no. 1 (Março 2004).

©Leia Marxistas (2021). Todos os direitos reservados (sobre a tradução). Reprodução somente com autorização prévia do Coletivo Leia Marxistas e com referência da fonte original da tradução.

--

--

Leia Marxistas
Leia Marxistas

Written by Leia Marxistas

Se organizar direitinho, todo mundo lê.

No responses yet