A Crise Climática e o COVID-19 São Inseparáveis
Por Drew Pendergrass e Troy Vettese. Texto publicado em 31 de maio de 2020 em Jacobin.
Traduzido por Rafaela Debastiani. Revisado por Débora Cunha.
Os comentaristas gostam de apontar os “mercados úmidos” de Wuhan como a fonte da pandemia, mas o COVID-19 é o resultado de um fenômeno global muito maior de degradação ambiental. Combater os dois significa colocar a política de produção de alimentos e uso da terra no centro de nosso projeto socialista.
No século XVIII, Edward Jenner, o inventor da primeira vacina, enfrentou uma crise semelhante à que enfrentamos hoje — um mundo destruído pela doença. Não era o coronavírus que ele estava estudando, mas a varíola, uma doença com uma taxa de mortalidade variando entre 20 e 60 por cento no Velho Mundo e ainda mais alta no Novo.
Observador astuto e ornitólogo talentoso, Jenner entendeu que as epidemias não são crises atemporais e inevitáveis, mas surgem do crescente envolvimento da civilização com a natureza. É devido às suas origens como doenças animais que patógenos como o SARS-CoV-2 são chamados de “zoonoses”. “O desvio do homem do estado em que foi originalmente colocado pela Natureza parece ter se mostrado uma fonte prolífica de doenças”, começa Jenner no tratado de 1798 sobre seus experimentos de vacinação. “Ele se familiarizou com um grande número de animais, o que pode não ter sido o plano original de seus companheiros.”
O reconhecimento de Jenner dos vínculos estreitos entre a saúde pública e a crise ambiental mais ampla não é, de forma alguma, compartilhado por muitos comentaristas hoje. Enquanto a direita recorre a táticas xenófobicas, como usar os mercados chineses como bodes expiatórios, a esquerda tende a enfatizar a falta de respostas do governo, a necessidade de saúde pública para todos [Medicare for All], ou talvez a rara crítica à pecuária industrial. Muitas vezes, no entanto, esses debates assumem que as zoonoses são eventos inevitáveis, cujas causas não precisam nos preocupar.
Embora haja de fato problemas urgentes que precisam ser resolvidos agora, um entendimento mais amplo da origem do SARS-CoV-2 também é necessário. Para entender isso, precisamos enfrentar a crise ambiental como um todo, porque cada faceta dela — da extinção à mudança climática — tem o potencial de produzir mais doenças. Apesar do uso em voga de conceitos como o “Antropoceno”, o envolvimento da esquerda com as ciências naturais permanece limitado. Essa disjunção é especialmente chocante considerando os laços estreitos entre cientistas e socialistas durante o final do século XIX e início do século XX. Se alguém seguisse os desenvolvimentos científicos agora, logo ficaria claro que a condição de deterioração da biosfera necessita de uma forma inteiramente nova de socialismo onde as políticas de alimentação e energia não são marginais, mas ao contrário, estão em seu cerne.
A Nova Idade da Pedra
Os epidemiologistas dividem a história das doenças infecciosas em três grandes épocas. A primeira começa há dez mil anos com o início da agricultura neolítica. Os rebanhos domesticados mantidos em contato próximo com os humanos criaram condições para que novas doenças se propagassem entre as espécies com uma frequência impossível nas sociedades de caçadores-coletores. A segunda é a breve era moderna de rápido progresso científico que vai dos anos 1850 aos anos 1970. O epidemiologista Rudolf Virchow, trabalhando na tradição científica iniciada por Jenner, cunhou o termo “zoonose” e defendeu que a saúde humana e veterinária deveriam ser estudadas juntas como uma medicina ou, como é chamada hoje, “medicina planetária” e “uma saúde”. Os avanços médicos no século XX levaram a novas vacinas e antibióticos milagrosos, os quais salvaram milhões de vidas. Mas a modernidade não durou. A terceira era zoonótica começou na década de 1980, a era das trevas em que definhamos atualmente, marcada pelo surgimento sem precedentes de novas doenças.
Não é mera coincidência que este último período coincida com as forças que definem a pós-modernidade: cadeias de commodities globalizadas, a ascensão do neoliberalismo, o esgotamento dos recursos naturais metropolitanos, o surgimento de empresas multinacionais monopolistas, a desindustrialização no Norte Global e o rápido, mas desigual, desenvolvimento no Sul.
O comércio de animais exóticos — seja em Wuhan ou na África Ocidental — não pode ser entendido isoladamente dessas tendências. O SARS-CoV-2 poderia ter sido originalmente uma doença do morcego ou do pangolim que passou para um animal intermediário, onde se recombinou e se tornou infeccioso para os humanos. O comércio de animais exóticos é central, pois coloca não só os humanos em contato próximo com os animais selvagens, mas também espécies variadas que nunca estariam próximas na natureza. Como isso aconteceu, visto que a China era famosa por suas práticas agrícolas sustentáveis milenares até recentemente, na década de 1970? Tudo começou a mudar na década de 1990, quando o país adotou um sistema alimentar industrial centrado na carne. Os pequenos agricultores não podiam competir com as fazendas industriais, então o governo os encorajou a entrarem no comércio de animais selvagens, embora isso tenha levado a surtos como o SRAG em 2003, um coronavírus que saltou de morcegos para civetas e humanos.
Histórias semelhantes acontecem em todo o mundo, onde os pobres são forçados a se sujeitarem a circunstâncias desesperadoras pelas forças do mercado e pela política estatal, levando à rápida desestabilização dos sistemas ecológicos locais. Quando os arrastões europeus invadiram as áreas de pesca ao largo da costa da África Ocidental, a população local recorreu à “carne de caça” para obter proteína barata. Esses sistemas alimentares transnacionais e desiguais têm contribuído não apenas para a extinção em massa, com espécies de vertebrados desaparecendo mais de mil vezes mais rápido do que o normal, mas também para novas zoonoses, como o Ebola e o HIV. As estradas construídas para expandir o alcance das empresas de mineração, petróleo e madeira permitem que os caçadores cheguem a regiões florestais antes inacessíveis, colocando os humanos em contato próximo com a vida selvagem. Só na Bacia do Congo, mais de meio bilhão de animais são capturados todos os anos, muitas vezes para alimentar os mineiros.
Obviamente, o comércio de animais selvagens também inclui o Norte Global. “Ecoturistas”, quando viajam, transmitem sarampo, poliomielite e tuberculose aos primatas. Vigilantes de zoológico e funcionários de laboratório têm uma probabilidade desproporcional de portar o vírus Símio Espumoso. O comércio de animais de estimação exóticos provavelmente deu passagem ao vírus do Nilo Ocidental para a América do Norte, onde este devastou espécies de pássaros nativos e matou mais de 2.300 pessoas.
Uma crítica limitada ao comércio de animais exóticos ignora como ele está vinculado ao destino do campesinato mundial, uma classe que foi devastada pela agricultura industrial. Mesmo um olhar superficial sobre a economia da carne de caça mostra que não podemos proteger a vida selvagem sem nos livrarmos das pecuárias industriais também, o que significa que não podemos mais comer carne barata.
Talvez a percepção mais importante que os socialistas podem extrair da saúde planetária seja que o desafio das novas zoonoses é inseparável da crise ambiental mais ampla. Ou seja, existe uma crise ambiental única e unificada. É uma falha de imaginação dividi-la artificialmente em problemas distintos como mudança climática, expansão urbana, extinção em massa, escoamento de fertilizantes, doenças não transmissíveis e epidemias.
A ciência por trás de cada um desses fenômenos é complicada, mas a mensagem geral é simples: quanto menos espaço a humanidade deixar para a natureza, mais problemas ambientais — incluindo novas zoonoses mortais — haverá. Fazer referência ao “Antropoceno” é uma forma de encapsular a escala do problema, mas é descritivo demais quando precisamos de conceitos analíticos para entender por que entramos em uma nova era geológica. Aqui está uma área em que a Esquerda pode intervir de forma útil, fornecendo aos cientistas e à sociedade em geral os conceitos capazes de enquadrar a crise ambiental unitária. Em vez de falar sobre o “Antropoceno”, podemos tirar o pó de um antigo debate marxista: a humanização da natureza.
O Espírito do Mundo e os Duendes do Bosque
A “humanização da natureza” é uma ideia originada em Hegel, que considerou a alienação da humanidade da natureza o ponto crucial da história mundial. O trabalho era entendido como o processo que reconciliava os dois, instilando a natureza com a consciência humana. Em vez de tirar nossa comida diretamente da natureza, como fazem os animais, os humanos usam ferramentas para guiar os fluxos naturais para a produção de plantio e de animais domésticos (reconhecidamente uma simplificação grosseira). Podemos expandir a lógica de Hegel para dizer que muito da humanização da natureza, então, é a história da “mudança no uso da terra”, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas poderia dizer.
Karl Marx fez uso do conceito de Hegel, reconhecendo o processo como uma expressão da natureza humana (ou seja, nosso “ser-espécie”). Ao contrário de Hegel, no entanto, Marx sentiu que a humanização da natureza havia sido distorcida sob o capitalismo devido ao divórcio entre a inconsciência do capital e a consciência humana. Para Marx, o capital buscava apenas a autoexpansão. O indivíduo capitalista era “o capital personificado”; embora “dotado de consciência e vontade”, argumentou ele, sua liberdade era limitada, voltada para atingir oobjetivo único de acumulação de capital. Vemos isso hoje: a CEO de uma empresa pode ser uma amante da natureza, mas não pode investir em tecnologia cara e ecologicamente correta sem que sua empresa seja destruída se ela não conseguir obter a taxa de lucro normal. O conceito de humanização da natureza, adaptado por Marx, explica porque a sociedade pode ter consciência de que está se aproximando do precipício e permanecer incapaz de mudar de curso, porque a extração planejada de combustíveis fósseis excede dramaticamente os limites do Acordo de Paris. Os políticos podem dizer uma coisa e até escrever em um tratado, mas “deixar os combustíveis fósseis no chão” é inconcebível em nosso sistema econômico atual.
Como um conceito, a “humanização da natureza” é útil — mais do que o “Antropoceno” — porque destaca que o capitalismo é fundamentalmente um projeto de reorganização da natureza que se distingue de outros períodos históricos, e que acabará por levar à catástrofe porque o capital é uma força insensata, inconsciente de estar destruindo a biosfera. Diante de tal processo, então, precisamos de controle consciente sobre a economia, ao mesmo tempo em que damos à natureza o espaço de que ela precisa para funcionar.
Como socialistas, não precisamos apenas resistir à capitalização da natureza sempre que possível, seja à queima da floresta amazônica por pecuaristas ou à instalação de novos oleodutos no Canadá para transportar petróleo não convencional. Também devemos ser cautelosos com uma humanização socialista da natureza: a vontade de dominar a natureza para fins de esquerda. A fantasia do controle prometeico mantém um forte domínio sobre a esquerda, especialmente entre os adeptos do “comunismo de luxo totalmente automatizado” (Aaron Bastani, que apóia a carne de laboratório e o reflorestamento, é uma exceção parcial dentro dessa corrente).
Os socialistas raramente aplicam suas alardeadas habilidades de crítica e inteligência científica à mesa de jantar. Certamente, Marx não era um ambientalista e, portanto, às vezes somos forçados a pensar contra ele para imaginar o que socialismo pode vir a ser. Marx pode estar certo ao dizer que a história começou com o nascimento da agricultura, mas ele negligenciou o surgimento de sua irmã gêmea — a epidemia.
O nascimento da tragédia e da tuberculose
Os cientistas pensam que a maioria, talvez todos, dos patógenos humanos são, em última análise, zoonoses, originadas não no início da espécie humana, mas em um passado relativamente recente. O sarampo provavelmente evoluiu da peste bovina há 7.000 anos. A gripe pode ter começado há cerca de 4.500 anos com a domesticação das aves aquáticas. A própria especialidade de Jenner, a varíola, provavelmente se originou há 4.000 anos na África oriental, quando um vírus do gerbil saltou para o camelo recém-domesticado e depois para os humanos. No Novo Mundo, a agricultura era amplamente praticada, mas poucos animais eram domesticados, razão pela qual os povos indígenas viviam relativamente livres de doenças. Com a colonização, no entanto, a criação de animais deu aos invasores europeus uma vantagem epidemiológica, e os indígenas foram rapidamente expostos ao sarampo, tifo, tuberculose e varíola. A população do Novo Mundo totalizava entre 50 e 100 milhões de pessoas em 1492, mas caiu 90% nos séculos seguintes, em grande parte por causa das zoonoses do Velho Mundo.
Por um tempo, parecia que as novas drogas acabariam por conter os patógenos, assim como o estado de bem-estar havia domesticado o capitalismo. Em 1972, os autores de um livro sobre doenças infecciosas acreditavam que “a previsão mais provável sobre o futuro das doenças infecciosas é que ele será muito entediante”. Em 1975, o reitor da faculdade de medicina de Yale previu que “não havia novas doenças a serem descobertas”.
Foi apenas um ano depois que o vírus do Ebola foi identificado. Pouco tempo depois, o editor do primeiro compêndio oficial sobre a nova zoonose advertiu: “Quanto maior a escala das mudanças ambientais causadas pelo homem, maior deve ser a probabilidade de surgimento de uma zoonose, velha ou nova.” O HIV tornou o problema ainda mais urgente. Na década de 1990, o campo das “doenças infecciosas emergentes” deixou de ser uma “mera curiosidade” para se tornar uma disciplina extensa. Após o susto da gripe aviária H5N1 em 2005, o governo dos Estados Unidos deu início ao programa PREDICT, que detectou quase mil novos vírus em uma década, incluindo novas cepas de Ebola e coronavírus. O governo Trump fechou o PREDICT no ano passado.
Qualquer faceta da humanização da natureza causará o que os cientistas chamam de “poluição patogênica”, a propagação de doenças entre diferentes espécies de animais. Doenças como a doença de Lyme e do Nilo Ocidental proliferaram porque o declínio da biodiversidade resultou no crescimento desequilibrado de algumas espécies portadoras, como camundongo-de-patas-brancas ou o tordo. O desmatamento e as mudanças climáticas expandem o habitat dos mosquitos, de modo que dengue, Zika, malária e outras doenças se tornam mais comuns. A atual erupção de novas doenças é um problema não só para os humanos, mas também para os animais. Novas doenças de corais estão ligadas à proliferação de algas e mudanças climáticas. Os gatos deram toxoplasmose a golfinhos-rotadores e belugas.
A pecuária industrializada tem feito muito para nos levar de volta à idade da pedra da saúde pública. Mesmo os pinguins imperadores da Antártida não estão isentos dessa mudança de época. Eles agora são afetados pela Doença Infecciosa Bursal, uma doença que surgiu na década de 1980 nas entranhas de grandes fábricas de aves na costa leste dos Estados Unidos. A extensão da indústria pecuária, cerca de 4 bilhões de hectares, abrange 40 por cento da superfície habitável do mundo, tornando-se a maior interface entre a humanidade e a natureza e, portanto, o principal portal para novas doenças.
A agricultura também mudou qualitativamente. O capital induz pressões inacreditáveis para aumentar a eficiência da produção de alimentos em detrimento da saúde. O próprio Marx criticou Robert Bakewell, um famoso criador [de animais] capitalista do século XVIII, por reduzir “o esqueleto das ovelhas ao mínimo necessário para sua existência”. De fato, Bakewell criava animais para terem menos ossos, de modo a aumentar seu volume de carne. Ao contrário de muitos de seus epígonos, Marx percebeu que não é necessária uma teoria separada para analisar os aspectos ambientais do capitalismo, pois o olhar cego do capital não via diferença entre animais e máquinas.
Os Bakewells atuais manipulam a genética animal para encorajar características como maior produção de ovos ou carne de peito, mesmo ao custo de sistemas imunológicos enfraquecidos. As empresas criam animais geneticamente semelhantes — até mesmo clones — em instalações superlotadas e vulneráveis a surtos. O uso generalizado de antibióticos pode ajudar a manter as doenças sob controle (e acelerar as taxas de crescimento dos animais), embora ao custo da criação de “superbactérias” como a SARM, uma bactéria comedora de carne que se tornou comum em hospitais em todo o mundo. Mesmo doenças bacterianas comuns, como infecções do trato urinário, estão cada vez mais resistentes a tratamentos que teriam funcionado apenas uma década atrás; a cada ano, cerca de 35.000 americanos morrem de infecções resistentes a antibióticos. Estima-se que 71% das costeletas de porco vendidas nos supermercados dos Estados Unidos contêm bactérias resistentes a antibióticos; a taxa para peru moído é ainda mais alta, de 79%.
O vírus Nipah, identificado pela primeira vez em uma cidade da Malásia em 1998, revela como as várias vertentes da crise ambiental convergem para criar epidemias. Para aumentar os lucros, os agricultores colocaram pomares de manga ao lado dos rebanhos de porcos para que o estrume pudesse ser facilmente aplicado nas árvores. O desmatamento por corte e queima expulsou os morcegos frugívoros de seu habitat natural, levando-os a fixar residência em árvores recém-plantadas, onde puderam transmitir a doença para os rebanhos de porcos e, em seguida, para as pessoas. Os morcegos também se tornaram mais vulneráveis a doenças virulentas; à medida que suas populações se fragmentam, eles são apenas esporadicamente expostos ao reservatório de doenças. O que antes havia sido um vírus inofensivo em morcegos causou graves problemas neurológicos a porcos e humanos. O vírus matou cerca de um terço de suas vítimas na Malásia, mas sete décimos durante um surto posterior no sul da Ásia. Sua propagação só foi detida após quarentena estrita e o abate de um milhão de porcos; não foi por acaso que o surto começou na maior operação de suínos do país.
Libertar a lentilha
Os epidemiologistas que trabalham na tradição da saúde planetária têm clareza sobre o que precisa ser feito. Um emergente órgão de pesquisa sugere que a mudança no uso da terra é o “motor mais significativo da vida selvagem, dos animais domésticos e das DIEs [doenças infecciosas emergentes] em humanos”. Mais especificamente, a “crescente demanda por carne e produtos derivados da carne pela população humana tornou o contato humano com os animais sem precedentes”. Parte da solução deve ser “conservar áreas ricas em diversidade de vida selvagem, reduzindo a atividade antropogênica.”
A Associação de Saúde Pública Americana [American Public Health Association] pede uma moratória sobre a pecuária industrial. Na sequencia do surto de SARS de 2003, o jornal da associação publicou um editorial defendendo uma mudança na “forma como os humanos tratam os animais — basicamente, parando de comê-los ou, pelo menos, limitando radicalmente a quantidade deles que são comidos” como uma medida básica de saúde pública. “Tal mudança, se suficientemente adotada ou imposta, ainda pode reduzir as chances da tão temida epidemia de influenza.”
No momento, o mundo é relativamente afortunado, visto que as cadeias de suprimento de alimentos que sustentam a vida até então permaneceram intactas. Mas não há garantia de que os desastres naturais se espaçarão educadamente um após o outro, especialmente em uma era de mudanças climáticas. Imagine o surgimento simultâneo de uma doença zoonótica de veiculação hídrica durante uma grande inundação no sul da Ásia, enquanto as regiões do celeiro mundial sofrem secas simultaneamente. Um desastre dessa escala, qu e se torna mais provável com cada molécula de CO2 que entra na atmosfera, com cada micróbio que salta do animal para o humano, com cada milímetro de elevação do nível do mar, levaria a um sofrimento extraordinário.
Para limitar o impacto de futuras pandemias e, ao mesmo tempo, evitar a extinção em massa e mitigar as mudanças climáticas, devemos lutar para reestruturar nossos sistemas alimentares e deixar de lado a produção de carne. O relatório EAT-Lancet, escrito por trinta e sete estudiosos de saúde pública e cientistas ambientais em nome de uma importante revista médica, defende um aumento dramático no consumo de vegetais, frutas, grãos saudáveis e proteínas vegetais, e reduções drásticas na carne e laticínios.
Esses cortes ocorreriam predominantemente entre os ricos no mundo desenvolvido carnívoro, pois eles comem duas ou três vezes mais carne do que a média nos países pobres. Em algum momento, porém, nosso horizonte político deve imaginar dietas à base de plantas para quase todos. São as dietas insustentáveis que estão impulsionando o desmatamento para abrir espaço para mais pastagens em alguns dos lugares de maior biodiversidade do planeta, como a floresta amazônica. Se a maioria das sociedades fosse capaz de adotar a dieta Eat-Lancet, estima-se que 11 milhões de mortes por ano poderiam ser evitadas. A desnutrição seria evitada, minimizando as principais doenças não transmissíveis, como diabetes ou doenças cardíacas. Desistir da carne e restaurar vastas áreas da Terra — talvez até a metade, como sugere o polêmico conservacionista E. O. Wilson — deve fazer parte da agenda socialista.
Contar com vacinas, antibióticos e antivirais para lidar com epidemias futuras é como contar com a captura de carbono ou geoengenharia para salvar nossa sociedade baseada em carbono das mudanças climáticas. O PREDICT nunca pegaria todos os novos surtos, mesmo que não tivesse sido sabotado pela administração atual [administração de Trump]. O capitalismo não pode resolver os problemas que ele mesmo cria; A Big Pharma investe pouco em vacinas e antivirais porque os lucros suculentos estão nas doenças de afluência, como diabetes e disfunção erétil. No entanto, o que é mais preocupante é que os resultados podem ser elusivos, mesmo em campos bem financiados. A pandemia de HIV/AIDS, que matou 32 milhões de pessoas, mostra que nem todas as doenças podem ser resolvidas com uma vacina. Após o surto de SRAG em 2003, a Organização Mundial da Saúde declarou que “embora a ciência moderna tenha seu papel moderno, nenhuma das ferramentas técnicas mais modernas teve um papel importante no controle da SRAG… mais importantes no controle da SRAG foram as estratégias de saúde pública do século XIX de rastreamento de contato, quarentena e isolamento.” Como socialistas, devemos pensar estruturalmente e ser céticos em relação a “soluções” band-aid, “soluções” técnicas — especialmente porque a eficácia da medicina moderna parece estar diminuindo — e, em vez disso, ir diretamente à raiz do problema.
Deve ficar claro que a humanização da natureza não levou à reconciliação da humanidade com a natureza, mas antes à ruína de ambas. Devemos nos conscientizar dos limites da consciência humana — que nosso bem-estar está amarrado a sistemas naturais complexos que nunca compreenderemos completamente. Em vez da inconsciência do mercado dirigir a natureza e a sociedade, a esquerda deve se esforçar para administrar conscientemente os assuntos humanos, mas humildemente deixar muito da natureza auto-governada. Isso não é por causa de algum misticismo anti-científico, mas uma análise obstinada de como entramos nessa confusão.
Um novo socialismo construído em uma escala geológica ajudará os cientistas a alcançar o que eles não conseguem por conta própria. Para fazer isso, precisamos ver como as mesmas forças econômicas tóxicas estão no cerne das pandemias e das mudanças climáticas. Os socialistas não podem reconstruir o mundo antes de entenderem como ele foi desfeito. Essa compreensão surge não apenas do envolvimento com a ciência, mas também da crítica reflexiva. Como Jenner poderia ter observado, o “amor ao esplendor” e “as indulgências de luxo” da esquerda — seja carne, couro, animais de estimação ou produtos testados em animais — a impediram de ver sua cumplicidade na perigosa ruína da natureza.
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